Prólogo

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Em um lugar subterrâneo, isolado do resto do mundo e rodeado por áreas inóspitas e vulcânicas, morava um jovem garoto. Não com seus pais, pois o menino nunca os havia conhecido. Ao invés de laços consanguíneos, o garoto tinha Charlotte — a mulher que havia assumido sua guarda — e Harvey, pai de Charlotte.

Tudo que o menino sabia sobre seu passado lhe foi contado por Harvey. O velho homem havia dito que o encontrou na porta de casa, quando bebê, e enrolado em tantos lençóis que ele até se perguntava como o menino não tinha sufocado. Em meio a estes lençóis também havia um bilhete, e nele, um nome — Ray.

Como se não bastasse a bizarra ocorrência, os lençóis nos quais o garoto estava enrolado eram de tamanha qualidade que era impossível que tinham sido fabricados no Subterrâneo, pois o algodão lá cultivado era muito mais empobrecido. Percebendo isso, a mente de Harvey começou a trabalhar a todo vapor, com inúmeras hipóteses.

Seria aquela criança uma prova de que era possível que humanos sobrevivessem lá fora? Como ele teria evitado os monstros que habitam o mundo externo? Quanto mais pensava nessas questões, mais ele reparava detalhes interessantes no garoto — sua pele parecia mais corada, e seus cabelos não eram desprovidos de cor como a maioria dos humanos. Ao invés disso, eles tinham um leve tom dourado.

Omitindo a parte a respeito da procedência dos lençóis, Harvey havia finalmente terminado de recontar sua história, que já tinha contado tantas outras vezes para o menino.

— E aí, eu te trouxe pra cá, obriguei Charlotte a cuidar de você....— O homem disse, concluindo a narrativa enquanto simultaneamente provocava sua filha.

— Eu QUIS cuidar dele, pai. — A mulher respondeu quase que na mesma hora, de braços cruzados.

O velho riu, e Charlotte virou o rosto para outra direção.

— Você fica brincando com essas coisas, daqui a pouco Ray vai começar a achar que eu realmente não gosto dele. — Ela concluiu, parecendo envergonhada em falar sobre o assunto.

— Ouviu isso, Ray? Ela gosta de você! — O velho disse, se virando para o garoto com um sorriso no rosto — E eu também. Então me diga menino, por favor....

O semblante de Harvey de repente se tornou sério.

— Por que exatamente você quer sair daqui? Se não está insatisfeito com a gente, então por quê?

Ouvindo isso, Ray se sentiu culpado. Ele se questionou por anos se era mesmo justo abandonar Harvey e Charlotte por um motivo tão incerto. Mas ele já estava com treze anos. Sentia que tinha direito de ser um pouco mais independente, então decidiu insistir mais.

— Vocês acreditam em destino?

Charlotte e Harvey se encararam, em dúvida.

— Eu acredito que talvez... seja meu destino, sair daqui. Eu ando tendo sonhos constantes a respeito do mundo lá fora. Na verdade... não. — Ray respirou fundo, como que se preparando para admitir algo importante — Eu tenho esses sonhos desde sempre. Todos os sonhos que tive até hoje, ou ao menos todos que consigo me lembrar, foram sobre isso.

— Sobre o que exatamente você sonha? — Charlotte perguntou.

— Um solo quente, dourado. Que os pés se afundam ao pisar. E eu me sinto confortável, quando penso nisso. É como se eu pertencesse lá.

Ao ouvir isso, Harvey se ajustou na cadeira. Pareceu estar perdido em seus pensamentos. Charlotte ficou calada, observando seu pai. Ela já imaginava o que ele iria dizer.

— Ray... tem algo que preciso te contar.

Charlotte se desencostou da parede na mesma hora e respondeu, visivelmente perturbada.

— Pai, eu não acho que é uma boa ideia.

O velho se virou para sua filha e sorriu.

— Ele cresceu rápido, né? E pensar que eu ainda lembro de quando peguei aquele bebê nos braços pela primeira vez...

Ray ficou envergonhado e baixou a cabeça. Já a garota, não parecia nada feliz. Na verdade, seu semblante indicava o quanto ela estava revoltada com a situação.

— Por que você fala como se estivesse tudo bem? Por que você fala como se fôssemos abrir mão dele!?

A cara de Harvey se fechou.

— Eu não estou abrindo mão de Ray, Charlotte! — O velho gritou, levantando-se — Ele nunca foi nosso. Você sabe disso!

A garota abaixou a cabeça, e Ray sentiu como se ela fosse chorar. Ignorando a filha e mascarando seus próprios sentimentos, o velho se virou para o garoto.

— Eu acabei de te contar de novo a história sobre quando eu te encontrei, não foi?

Ray concordou levemente com a cabeça.

— O que eu nunca te contei, é que um objeto veio junto com você, e eu não estou falando do bilhete com seu nome.

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