capítulo 6

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Se seus pais fossem adeptos a palavras de baixo calão, provavelmente as estariam usando agora.

Alice estava completamente fora de sua organização e ia ao encontro de seus pais com algumas (muitas horas) de atraso, algo que eles repudiam imensamente e com certeza iam reclamar quando ela chegasse. Mesmo com dois despertadores diferentes, ela teve a proeza de não conseguir ouvi-los e isso fez com que todo o planejamento fosse por água abaixo. Sua ideia era chegar no horário ideal, para que assim não reclamassem que ela chegou cedo ou tarde demais. Em algum momento no chá da tarde, que seria o ápice do encontro, ela revelaria os últimos feitos de sua vida, o que incluía exclusivamente sua formatura. Seus pais fariam caras de choque e brigariam com ela por não ter tido nada antes, amaldiçoando toda a próxima geração de tanta raiva da filha. Então, Alice daria uma desculpa esfarrapada que iria trabalhar no turno da noite de domingo que na verdade era sua folga, tentando fazer com que acreditassem que ela não era uma enfermeira ordinária e era necessário que partisse para salvar o hospital de uma crise. Ela correria para o metrô e iria para onde quer que o primeiro que passasse estivesse indo. Aí, então, ela gritaria bem alto e entraria em paz. Como não acordou no horário em que queria e estava agora correndo a rua de seus pais para não perder mais um segundo, isso não iria acontecer.

Quem diria que a rotina de uma enfermeira seria tão difícil? Após sua graduação há 2 semanas, sua vida tinha ficado de cabeça para baixo. Ainda que no último mês de sua vida como estagiária sua supervisora Ayaka tenha dado trabalhos mais pesados para ela, o meio período que precisava cumprir era algumas vezes na semana e resumido em idas até a cafeteria, passeios no corredor e bate papo na sala de funcionários. Agora que precisava passar pela jornada de 40 horas semanais mais 4 horas nos sábados, conseguia entender todas as promessas e juramentos que fez para ter o seu quepe.

Mesmo com seu tempo agora resumido e o aumento de suas responsabilidades, ela até então conseguia lidar com tudo dentro de sua agenda. De segunda à sexta, ela fingia que o mundo fora do hospital não existia. Todas as manhãs, sua bolsa e uniforme estavam arrumados sob a cômoda em seu quarto, restando apenas que tomasse banho e fizesse o seu café. Ela cumpria suas 12 horas de serviço com plena concentração e sem pausas. No fim do expediente, voltava para casa para assistir Fuji TV pelo resto da tarde e descobrir as novas aventuras de Astroboy como se já não tivesse visto todos os episódios quando criança. Conforme à noite se aproximava, ela colocava no NHK para acompanhar as notícias e a previsão do tempo enquanto preparava o jantar. Repetindo o mesmo dia um atrás do outro, Alice tinha sua semana praticamente formada. Nem tudo era tão monótono, já que as aulas de japonês aos sábados na casa de Yuko e Hijon ainda estavam de pé e funcionando bem, com direito até a uma pausinha nos estudos para que as amigas fossem a surpreender com um bolo em comemoração à sua graduação. E agora era domingo, um dia que geralmente tirava para estudar sozinha, mas atualmente usava para visitar seus pais em Kyoto.

— Você está atrasada. — foi a primeira coisa que sua mãe lhe disse quando atendeu a porta.

Ela usava um vestido que ia até suas canelas e também cobria seus braços, provavelmente pelo frescor gelado que o dia de primavera trazia. A estampa preta com linhas vermelhas combinava com o tom branco que a casa tinha. Alice sentia que estava entrando em outro hospital em seu dia de folga com tanto minimalismo e falta de cores. Sua mãe era o tipo de pessoa que até mesmo em casa com apenas a presença de seu marido, gostava de estar apresentável e elegante, usando roupas que muitos colocariam apenas em ocasiões especiais como roupas do seu dia-a-dia.

— Perdão, mãe. O metrô teve um atraso... — ela coçou atrás da cabeça tentando achar alguma coisa para dizer que não fosse piorar sua imagem naquela hora. Sabia que seus pais já estavam num nível de irritação que não iria gostar de piorar.

COISAS EGOÍSTAS › jojiOnde histórias criam vida. Descubra agora