I - Escorregão na poça

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Uma poça d'água e um jovem distraído são como um convite para dançar. A união de dois sujeitos que o único momento que vale é o presente. E se houvesse uma música, com certeza seria a nona sinfonia de Beethoven. Por que a morte não pode ter gosto musical? Inclusive, tenho senso de humor. E cá entre nós, mortes acidentais estão dentre as mais divertidas.

Era tarde de um domingo qualquer quando levei a alma daquele rapaz – qual não me convém citar o nome, pois você provavelmente não o conhece, a não ser que você seja a sua esposa depressiva que cometerá suicídio em algumas semanas, aí sim eu tenho algo para você: sinto muito.

Sim, eu sei quando e quem vai morrer. As coisas tem um rumo natural para seguir. Os suicidas me deixam maluco, bagunçam totalmente minha agenda, fazem meu vetusto relógio parar no tempo e isso me deixa extremamente entediado. Mas de sua esposa suicida reservarei um tempo futuro para retratar. Dê play na nona sinfonia se preferir.

Eu estava caminhando impacientemente no banheiro da casa do casal de um lado para o outro enquanto sua esposa secava o chão. Coitada, gastar os últimos segundos de sua vida que podia estar ao lado de seu marido secando algo que não seja lágrimas tende a ser muito desmotivador na maioria das vezes. Lá está ele e o crescendo está se aproximando.

Meu relógio passou a tiquetaquear mais devagar. Isso sempre acontece quando uma morte se aproxima. Muitas pessoas morrem no mundo e eu sou um só, oras bolas. Ele entrou no banheiro e apesar do esforço de sua mulher para secá-lo, havia ainda uma singela poça. Meu relógio parou, como de costume. Era a hora de sua morte.

Gosto de conhecer cada um que levo. Dancei a sua volta com meu corpo esguio e o analisei, passei a mão em seus cabelos, senti o seu cheiro, olhei em seus olhos. Os humanos tem o hábito de dizer que quando está prestes a morrer, é possível ver a vida inteira, como num filme. Mas na verdade, eles apenas estão olhando para o meu semblante.

Puxei um de seus pés de apoio com minha foice no momento que ele pisou na poça. Ele ia morrer de qualquer forma – não pense que sou malvado –, mas tenho que levar a alma de quem morre comigo. E se isso fizer você se sentir melhor, um dia terei que levar a sua também.

Ele escorregou e ao tentar recompor o equilíbrio, fez sua artéria carótida ir de encontro com uma pia de porcelana. Creio eu que após isso sua mulher tenha tentado socorrê-lo, porém sem sucesso, enquanto ele sufocava com o próprio sangue. Não pude assistir até o fim, haviam mais 144.772 almas para levar naquele dia.

Você deve ter se perguntado: 1) o que você fazia quando não tinha ninguém para morrer? Você acha que só seres humanos tem alma? Só animais? Tudo tem uma alma, pedras, folhas, a luz, a água, tudo. Porém, do homo sapiens pra cá, passei a deixa-los viver para sempre, já que vocês não notariam mesmo e de quebra só ligam para vocês, prova disso é o item número um desse parágrafo.

Porém, quando não havia nada: nem pedras, água, luz ou espaço, aí realmente eu era alguém bem entediado. Eu era tão entediado que criei uma companhia, a Solidão. Solidão hoje se parece como uma menininha num parque, usando um vestido preto e segurando um balão. Ela logo ficou tão entediada quanto eu e então criou todo o resto na frustrada tentativa de sentir-se menos sozinha.

Seja você criacionista ou evolucionista, deve ser no mínimo estranho imaginar que a própria vida e todo o universo surgiram da morte, e não o contrário. É, há muitas coisas que vocês não sabem ainda. De todas as coisas legais que criei - tempo, espaço, cosmos, vida -, a mais desapontante foram os humanos. Eles chegaram a criar a religião, apenas para tentar driblar o fato de que um dia inevitavelmente eles terão que me encontrar.

Os humanos possuem uma infindável necessidade por respostas. Chegam a criar problemas que não possuem apenas pela necessidade de solucioná-los, invés de apenas viverem sua droga e monótona vida. Eu também já tive uma crise existencial ao indagar quem ia me levar ao chegar minha hora, mas ficar pensando nisso era realmente uma perda de tempo.

Tudo que existe, há de inexistir, inclusive, eu. Preciso falar algo sobre juras de amor? Sério, se eu pudesse dar um conselho? Não ame. Nunca. Sabe aquela história de até que a morte nos separe? Quando dá certo, eu realmente separo, mas dá um trabalhão. Pessoas que se amam até o fim da vida meio que emparelham suas almas e isso me deixa meio confuso, às vezes tenho que escolher entre um e outro, na maioria das vezes, eu acerto.


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