O Horror vindo do Mar

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Suellen abriu a janela do seu quarto defronte do mar inquieto, na casinha velha de pau a pique onde morava, e o único ruído que ouviu foi o agitar da distante maré revolta naquela madrugada de agosto, enquanto contemplava a negra cúpula celeste que parecia menos estrelada que o habitual. O sono era como um animal indomável que fugia arredio toda vez que a jovem tentava alcançá-lo. 

Talvez tenha sido a discussão de seus pais na noite passada que a incomodava. O velho Chagas chegara bêbado em casa, irritando-se quando sentiu a janta fria. A cena da mãe e do irmãozinho de seis meses desabando no chão após o violento soco dado por Chagas não desaparecia. Suellen queria agir em defesa da mãe, mas a paralisia instintiva dominava a todos, que sabiam que não podiam fazer nada diante da mão pesada do velho pescador.

A lembrança martelante trazia pensamentos desorganizados que invadiam sua mente de forma avassaladora feito sombras fantasmagóricas espreitando sua imaginação. Apesar de já ter se habituado com aquele nervosismo, ela nunca  conseguiu controlá-lo, e isso afetava tanto seu ser que, às vezes, Suellen sentia como se essas sombras tocassem-na zombando como uma ameaça tangível e inevitável, sufocando todo o seu senso de realidade. Era um sentimento de revolta diante da situação já corriqueira naquela rotina conturbada.

O que ainda amenizava sua inquietude era o silêncio vivo da noite, o cheiro do oceano adormecido, a brisa úmida da madrugada e a sensação niilista da solidão do universo quando ela vislumbrava a abóbada natural do mundo. A garota absorvia essa sensação de grandiosidade infinita como bálsamos que acaloravam sua alma. Esse sentimento de Unidade ligando as individualidades, como elos condicionados apenas pela existência no mundo concreto, a noção de pequenez e, ao mesmo tempo, de amplitude a deslumbrava e, de modo inconsciente, afagava sua incerteza e indignação.

Ao longe, os barcos atracados pelas âncoras pontiagudas no banco de areia refletiam o brilho leitoso da lua incidindo sobre os cascos velhos dançando sob o ritmo da maré tristonha. Suellen pouco se importava com essa paisagem pitoresca e enfadonha da rotina cansativa de uma vila de pescadores, mas, algo estranho, de repente, chamou-lhe a atenção, distraindo sua ansiedade. 

Uma luz esférica, longínqua e difusa bruxuleava, na altura da linha do horizonte, como se estivesse no meio do oceano. Não era um navio, porque navios são inimagináveis nos catorze metros de profundidade da Pedra do Sal. Uma embarcação de médio porte também era rara naquelas águas agitadas da costa. Os barcos de pesca não podiam ser, já que nem mesmo “seu” Justino, o mais madrugador dos pescadores, estaria na orla às três da manhã. 

A bola luminosa, que a garota julgou ser do tamanho de um carro comum, apesar de bem poucas vezes ter visto um de perto, não tinha uma tonalidade fixa, variando do amarelo claro ao vermelho fogo, trocando de cor à medida que subia e descia em um ritmo sinistramente repetitivo. Era apenas um ponto de luz envolvido na escuridão da madrugada, mas que a jovem sentia ter vida própria. Parecia não estar flutuando na água, pois não obedecia ao incessante movimento da maré. A garota, inexplicavelmente, sentia que também era observada pela luz e isso provocou um eriçar involuntário nos pêlos de seu corpo. Ela não tinha certeza se o que a fazia permanecer no batente da janela e não se esconder era uma incoerente sensação de curiosidade ou simplesmente a paralisia causada pelo medo.

A luz subia lentamente até uma altura que Suellen estimou ser de uns dois metros acima da linha do horizonte, descendo na mesma altura, segundo imaginou a jovem. Seria aquilo uma forma de vida? Algum tipo de transporte voador alienígena, ou o espírito de alguém que morreu afogado nas ondas, errando à esmo, ainda não crédulo de sua nova condição existencial?

A garota esfregou as mãos nos olhos várias vezes, achando que aquela visão talvez fosse apenas um golpe de vista. A pele dos dedos ardia com o atrito provocado pela força aplicada nas mãos contra os globos oculares. Mas, o ponto de luz continuava lá, parecendo encará-la! Observá-la!

O Cadáver Na GarotaOnde histórias criam vida. Descubra agora