Por entre as prateleiras cheias de livros dos mais diversos tamanhos e línguas andava uma figura esguia. Carregava em seu rosto uma máscara de couro, que se assemelhava ao formato do bico de uma ave, o que o tornava inconfundível. Sua face era um mistério.
Coberto de preto da cabeça aos pés, tateava livro por livro. Por vezes tomava algum em suas mãos, mas logo devolvia à prateleira ao perceber que já havia estudado aquele título.
O bibliotecário o olhava estranho. Por que um médico tinha de ler? Seu trabalho não era só misturar ervas ao vinho e rezar? E por que abrir mão de sua valiosa coleção de livros para abrir uma “biblioteca pública”? Coisa de grego, provavelmente.
“Não importa, ele paga bem”
— Ainda não chegou nenhum novo, Senhor Argos. — disse Dominic, o bibliotecário, enquanto limpava seus óculos. — Na verdade, ouvi dizer que só chegarão na metade do verão do próximo ano.
Argos assentiu e voltou a contemplar sua obra-prima. Era magnífico, nem as mais prestigiadas abadias tinham tamanho acervo. Até para alguém de sua classe, era inacreditável.
Cada livro era feito à mão, normalmente por monges ou escrivães, e demoravam de meses a anos para serem terminados. Obviamente isso os deixava incrivelmente caros, e a maior parte da população não podia pagar por aqueles artigos de luxo.
Então por que não trazer os velhos costumes gregos? Afinal, scientia potentia est. ¹Naquele momento, a biblioteca só era visitada por poucos estudiosos, que procuravam os livros raros que ali tinham, ou monges sedentos por conhecimento, cansados da educação restrita aos assuntos eclesiásticos, mas ele pretendia mudar isso. Seu próximo passo seria construir uma grandiosa escola, onde todos teriam acesso à educação fora dos muros dos mosteiros. Adultos e crianças, homens e mulheres, reis e plebeus. Todos seriam ali bem-vindos.
Para isso, ele precisaria da ajuda da nobreza. Não seria tão difícil convencer Eduardo III, rei da Inglaterra, a doar-lhe o que fosse necessário. Seu amigo de longa data não hesitaria em o ajudar em uma causa tão nobre.
Ah, Eduardo! Um homem com um bom coração, porém de pavio curto. Certa vez, condenou um homem a forca por errar a cor do tapete que havia encomendado. Tantas foram as vezes Argos teve de intervir para que execuções de inocentes fossem impedidas.
Apressados trotes de cavalo interromperam a harmonia silenciosa da biblioteca, e então a grande porta se abriu brusca e dramaticamente. Em meio ao enorme feixe de luz estava um homem, que consumido em exaustão encarava intensamente o médico.
“Finalmente um rosto novo” — pensou Dominic
— Saudações, estudioso. Em que posso-
Dominic calou-se imediatamente ao perceber a espada presa em sua cintura. Era um soldado real, sua presença era um conhecido mau agouro. O que o mudo havia aprontado?
— Senhor, o Duque de Cornualha precisa dos teus serviços. — o soldado deu um longo suspiro — Imediatamente.
(¹) “Conhecimento é poder”
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A Divina Tragédia
Historical FictionNa Inglaterra, no auge da peste negra, com suas grandes habilidades médicas herdadas de sua ascendência grega, Argos é odiado pelos falsos médicos que o cercam. Munido de certa arrogância escondida por sua mudez e sua máscara, questiona a cura divi...