Asrai

4 1 1
                                    


Quando a fumaça finalmente desapareceu, Asrai abriu os olhos e encarou a jovem debaixo de seu corpo. A mulher estava dormindo há horas quando recebera a visita da fada, mas Asrai manteve silêncio, de forma que a humana não notara sua presença. Tocando a moça, que já suava frio e tremia de medo, Asrai transformou seus sonhos. A jovem estava agora tendo pesadelos.

O quarto ainda ostentava um cheiro ruim e enegrecido quando Asrai decidiu que já a tinha torturado o suficiente. Tremendo e suando frio, a pobre mulher choramingava com o pesadelo que devia estar atormentando seu inconsciente, puxava as cobertas desesperadamente e tentava acordar. Mas ela não o faria tão cedo. Não se dependesse da fada.

Descendo lentamente da cama, já que não podia mais voar, a pequena fada caiu com um baque, mas aterrissou em pé. Não alcançando 25 centímetros de altura, e com os cabelos agora enegrecidos, Asrai já fora uma fada "do bem", um ser mágico que era abençoado pelas forças da natureza e que cuidava do sono dos seres humanos, trazendo apenas coisas boas. Agora ela não passa de um cadáver escuro e poeirento, fazendo exatamente o contrário do que deveria, trazendo desequilíbrio para o mundo.

A luz do sol ainda podia destruí-la, mas, diferente do que faria com as outras fadas, que, ao serem tocadas pelos raios solares viravam gotas de água, Asrai se tornaria pó. E, mesmo sendo praticamente um monstro, ainda tinha consciência o suficiente para impedir sua destruição.

Não havia o que fazer para reverter tal situação. No fundo de tanta sujeira e podridão, ainda existia uma pequena gota de água que não deixava o espírito da fada morrer, e este era o único tipo de consciência que Asrai se permitia ter. Ainda assim, era impossível voltar ao normal, não depois do que fizera. Não depois de trocar sua alma por um amor impossível, um amor que estava destinado a ser desastroso e a destruí-la.

*

Há dez anos, a temperatura da ilha encontrava-se mais alta por conta do verão, e o sol estava surgindo no céu quando Asrai voltou para a água, escondendo-se. Mergulhando até o fundo do oceano, a pequena fada rodopiou em espiral, fazendo bolhas ao seu redor e chamando a atenção dos outros seres que por ali estavam, mas nenhum deles se aproximou dela, para total tristeza da pequena. Ela estava cansada de brincar sozinha.

Asrai deixou-se levar pelo movimento das ondas e fechou os olhos, sentindo os cabelos, na época verdes e compridos, fazerem cócegas em seu rosto e pernas desnudas. Ela adorava brincar com o oceano quando o mesmo estava alegre, e as ondas, calmas. Mas algo estava errado, e Asrai só foi perceber tarde demais. Algo pesado e de textura áspera envolveu seu corpo, puxando-a para cima, e a pequena fada não pôde escapar. Esticou os pequenos braços, tentando fazer força para fugir da rede ou se esgueirar pelos buracos da mesma, mas não conseguiu, pois, juntamente com ela, diversos peixes também estavam presos. As águas nada puderam fazer, e a rede foi puxada para a superfície.

Assim que sentiu o ar em sua pele, Asrai se encolheu, mas suspirou aliviada ao perceber que o sol já estava se pondo; portanto, não seria destruída, e, diferente dos peixes, que convulsionavam em contato com o oxigênio, Asrai respirava normalmente, agradecida por poder viver tanto na água quanto na terra. Olhando ao redor, ela via dezenas de seres marinhos se debatendo na embarcação em que também estava, e, sabendo que nada poderia fazer para salvá-los, Asrai fechou os olhos e fez com que todos tivessem um último sono bom antes de serem jogados em baldes cheios e mortos pelos humanos.

Escondendo-se no meio dos peixes, Asrai observava os humanos que a haviam capturado. Eram vários, todos possuíam barbas espessas e emitiam sons estranhos, nada parecidos com os sons marinhos aos quais ela estava acostumada a ouvir. Um deles, bem menor e sem barba, se aproximou da montanha de corpos marinhos em que ela estava, e, por mais que Asrai tentasse se esconder, aquele humano a viu. Ele não gritou, não chamou os outros e não a atacou, mas pareceu confuso. Muito confuso. Olhou ao redor como que para se certificar de que ninguém estava vendo e abaixou-se. Ele certamente devia conhecer as lendas e mitos a respeito de Asrai, pois sorriu, mostrando duas janelas em sua boca, que logo seriam preenchidas por novos dentes, e estendeu as mãozinhas em concha para ela, já imaginando quem a fada era.

AsraiOnde histórias criam vida. Descubra agora