Era fim de tarde e a lua avistou o sol se pôr atrás de um arvoredo. Uma brisa fria e reconfortante beijou afetuosamente o rosto de um menino. Seus olhos cerraram sob a última luz do sol daquele dia: nesse momento o seu olho esquerdo tingiu-se de um castanho avermelhado, e o direito brilhou puramente como um riacho, as cores vacilando entre o verde e o mel.
Caminhava por uma calçada pavimentada desviando ora buracos, ora raízes de alguma árvore solitária. Pendurada em um dos ombros estava uma mochila pesada, recheada com latinhas de energético, doces e alguns livros.
- O dia de hoje foi ótimo, não foi? - Disse uma voz.
O menino deteve-se subitamente.
- Quem disse isso?
- Quem mais seria?
Então o vento soprou mais forte e a voz sumiu com um murmúrio lamuriento.
O coração palpitou um sentimento de angústia em seu peito e o menino voltou a caminhar sem saber o que aconteceu. Dobrou a esquina, continuou em frente por mais alguns minutos, atravessou a rua e parou em frente ao portão de um condomínio. Os apartamentos eram como sobrados, havia uma escada no fim da área comum que levava para os andares acima, onde extensos corredores levavam aos apartamentos. A sua casa ficava no segundo andar, bem em frente a escada.
A janela de seu quarto estava aberta (dava para ver do portão, de onde estava) e os cactos que deixou exposto no vão da vidraça não estavam mais lá.
- Droga! - Resmungou o garoto, que rapidamente tirou a chave do bolso e entrou no condomínio.
Um vento forte havia derrubado os cactos para o lado de dentro do quarto, a terra dos vasos sujou o chão e sua escrivaninha que ficava bem debaixo da janela para aproveitar a claridade do dia.
- A pessoa passa o dia inteiro na escola estudando pra chegar em casa e ter que limpar uma bagunça dessas, que porre!
Alguns minutos se passaram enquanto o garoto arrumava suas coisas e a noite abraçou a cidade como uma velha amiga. A lua cheia brilhava intensamente no céu.
O menino deitou-se e repetiu em seus pensamentos "Estou ficando louco", abriu uma latinha de energético e sorveu um gole. Respirou fundo e começou a ler para tentar não pensar naquela voz que ouvira ainda há pouco.
Pelo visto o energético não lhe ajudou em muita coisa, de alguma forma ele acabou dormindo enquanto lia, pois assim que voltou a si ele teve que erguer o rosto amassado das páginas de seu livro. "Que merda, ainda bem que não estraguei o livro, pelo menos". A energia do bairro aparentemente havia caído, pois tudo que se via era a escuridão da noite. Sirenes de um carro soaram alto lá fora, foi possível ouvir a borracha raspar no asfalto enquanto dobrava a rua para seguir um motoqueiro.
- Ótimo! Era só o que faltava! - Ele pegou o celular e viu que marcava exatamente 01:00 da madrugada - O eclipse! - Levantou-se ligeiramente e correu para o lado de fora do apartamento.
Na madrugada de uma segunda-feira, a lua mudou. Sua superfície foi corada com um tom avermelhado como sangue e o céu nunca esteve tão escuro.
- Tão linda... - Disse a voz, a mesma voz que ele ouvira horas antes enquanto voltava para casa. Mas dessa vez, quando seus olhos rolaram para a direita, ele se viu ao lado de um menino baixo e magro, de cabelos brancos esvoaçantes e um olhar sombrio, porém amigável.
Um fio vermelho deslizou pela testa do desconhecido e gotejou no chão.
- Você está bem?
- Você consegue me ver? - Perguntou com espanto.
- O que?
- Não era pra você conseguir me ver...
- Tá, mas eu te vejo perfeitamente e... Você está sangrando? Bateu com a cabeça?
- Ah, sim, mas não se preocupe. Isso não é importante, já estou morto, por isso não deveria poder me ver.
- Mo-Morto? - Balbuciou o menino assustado, pensando que definitivamente deveria estar louco.
- Sim, um acidente há muitos anos. Mas não precisa se assustar, não lhe farei mal.
- Mas como é possível que eu te veja? E os mortos ficam vagando pela terra? E por que está aqui comigo? Te ouvi hoje mais cedo, você está me seguindo? E ...
- Nossa, quantas perguntas - Interrompeu o fantasma, com um certo ar de desdém - Eu te acompanho já faz um tempo, sim, mas não chamaria isso de "seguir". Quanto a me ver ou ouvir, não faço ideia do que esteja acontecendo, mas é interessante, com certeza.
O garoto parou de falar e, atônito, observou o fantasma enquanto pensava rapidamente em sua mente sobre tudo que estava se passando naquele momento. Aquilo não deveria ser loucura, não daria pra ter ficado tão profundamente louco do dia pra noite, o processo deveria ser gradual. Mas como acreditar em fantasmas quando não se acredita nem em deuses ou espíritos? Tinha que haver uma explicação racional. Mas qual seria? Como descobrir? E, mais importante, por que tudo aquilo estaria acontecendo?
Eram perguntas demais, respostas de menos. "Pensar nisso tudo agora vai acabar me tirando a sanidade, se é que ainda a tenho", pensou o menino se conformando com a situação. "Bom, uma coisa de cada vez, por enquanto tudo que sei é que vejo esse pirralho, que se diz morto, e que aparentemente ele vai continuar me acompanhando. Então não tenho muita escolha, vamos lá".
- Okay... E qual seria o seu nome?
- Nathaniel, mas pode me chamar de Nath, se quiser.
- Muito prazer, Nathaniel. Acho que já deve saber, mas sou Dylan.
- Sim, já sei muito sobre você. Que acontecimento mais interessante esse. - Disse o fantasma com um semblante de pura curiosidade.
- Que coisa mais bizarra, eu diria. E me diga, você vai me seguir o tempo todo? Vou ter que me acostumar com você até quando eu for ao banheiro?
- Não, inclusive já estou de saída, mas com certeza nos veremos de novo em breve. Boa noite. - Disse o fantasma, Nath, já desaparecendo sob o chão, como se estivesse de alguma forma em um elevador invisível que se movia para um andar abaixo.
- B-Boa Noite. - Gaguejou Dylan.
Percebendo só então que uma brisa bem fria batia na varanda naquele instante e que já estava com os olhos pesando de sono, como se dois sacos de cimento estivessem em seus cílios, Dylan entrou de volta em sua casa e desabou na cama, exausto, sem ânimo de pensar em tudo que acabara de lhe acontecer. Seu último pensamento foi como um sussurro - "Que dia mais peculiar" - e finalmente sua mente desligou-se.
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O Arauto do Colapso
Misterio / SuspensoUma história por: Eduardo Vórtex e Felipe Thuller A lua de sangue se elevou na escuridão do céu naquela noite. Dylan, um jovem estudante, sentia o vento da madrugada acariciar seu rosto... nesse instante, uma figura translucida surgiu: uma criança...