Capítulo 1

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        Madrugada de lua cheia. Dois vultos em roupas de trabalho surgiram na Rodovia 27, na periferia de Ashton, cidadezinha cuja vida girava em torno da faculdade. Com mais de 2 metros de altura e compleição robusta, eram perfeitamente proporcionados. O moreno exibia traços marcantes; o outro era loiro e poderoso. A pouco menos de 1 quilômetro da cidade, observavam-na e à cacofonia de sons festivos de suas lojas, ruas e becos, até que se puseram a caminhar.

        Era época do Festival de Verão de Ashton, um exercício anual de frivolidade e caos, seu jeito de dizer obrigada, volte sempre, boa sorte, foi bem tê-lo conosco aos cerca de 800 alunos da Faculdade Withmore que saíram para as tão almejadas férias de verão. A maior parte faria as malas e iria para casa, mas, sem dúvida alguma, permaneceriam todos pelo menos o suficiente para aproveitar as festividades, a discoteca, o parque de diversões, os filmes baratos e tudo o mais que fosse possível, às claras ou às escondidas, só por farra. Tempo de loucuras, oportunidades para embebedar-se, engravidar, brigar, cair no conto-do-vigário e passar mal do estômago, tudo na mesma noite.

        No centro da cidade, alguém com senso comunitário abrira um lote vazio de sua propriedade e permitira a um grupo ambulante de migrantes empreendedores montar seus brinquedos, barracas e toaletes e toaletes portáteis. Os brinquedos tinham melhor aspecto no escuro, grandes embustes cobertos de ferrugem e iluminação alegre, movidos a motores de trator com o escapamento aberto que competiam com a oscilante música do parque de diversões, guinchando ruidosamente de algum lugar no meio da barafunda. Nessa noite cálida de varão, no entanto, a multidão que por ali perambulava comendo algodão-doce só queria se divertir, divertir a valer. A roda-gigante girava devagar, hesitava para receber passageiros, girava um pouco mais até o desembarque, em seguida descrevia algumas voltas completas a fim de fazer valer o preço do bilhete; um carrossel revolvia em um círculo espalhafatoso, de luzes brilhantes, os cavalinhos descascados e caindo aos pedaços ainda saracoteando ao som pré-gravado de órgão a vapor; os freqüentadores do parque jogavam bolas a cestas, moedas a cinzeiros, dardos a balões de gás e dinheiro fora ao longo da instável passagem montada às pressas, onde os vendilhões repetiam sempre a mesma arenga, tentando convencer os transeuntes a tentarem a sorte.

        Em meio a tudo isso, os dois visitantes altos e calados se perguntava como uma cidade de 12 mil habitantes – incluindo os alunos da faculdade – conseguia produzir tão grande e fervilhante multidão. A população geralmente sossegada comparecera em massa, incrementada por gente de outras paragens à procura de diversão, deixando ruas, bares, lojas, becos e estacionamentos lotados nessa ocasião em que tudo era permitido e o ilegal, ignorado. A polícia trabalhava sem parar, mas cada prostituta, baderneiro, vândalo e bêbado algemado significava apenas que mais de uma dúzia continuava solta e vagueando pelas ruas. O festival, em um crescendo naquela que seria sua última noite, era como uma tempestade furiosa impossível de ser debelada; podia-se apenas esperar que amainasse, certo de haver muito o que limpar depois.

        Os visitantes avançaram lentamente pelo parque apinhado, ouvindo conversas, observando as atividades. Estavam curiosos em reação à cidade, por isso demoravam observando aqui e ali, à direita e à esquerda, adiante e atrás. A aglomeração de transeunte passava por eles como peças de vestuário a revolver-se na máquina de lavar, serpenteando de um lado a outro da rua, em ciclo imprevisível, sem fim. Os dois homens altos não tiravam os olhos da multidão. Estavam à procura de alguém.

        – Ali – avisou o moreno.

        Ambos a viram, Era jovem, muito bonita, mas também inquieta, olhando de um lado para o outro, máquina fotográfica nas mãos e expressão orgulhosa no rosto.

       Atravessaram, apressados, a multidão e colocaram-se ao lado da moça, que não lhes percebeu a presença.

        – Sabe – disse o moreno –, você poderia tentar olhar lá adiante.

        Com esse comentário simples, passou a mão nos ombros dela e a conduziu rumo a certa barraca na passagem. Ela atravessou o gramado e os papéis de bala, caminhando na direção da barraca onde alguns adolescentes desafiavam-se mutuamente a estourar balões de gás com dardos. Nada disso a interessava até que... sombras movendo-se sorrateiras atrás da barraca chamaram-lhe a atenção. Posicionou a máquina, deu mais alguns passos cuidadosos em silêncio e levou a máquina rapidamente ao olho.

        O clarão do flash iluminou as árvores ao fundo enquanto os dois homens se afastavam depressa para o próximo encontro.

        Moviam-se ágeis, sem hesitação, seguindo a passos rápidos pelo centro da cidade. Seu destino ficava a cerca de 1,5 quilômetro dali, envergando a Rua Popular e subindo uns 800 metros até o topo de Morgan Hill. Não demorou quase nada para que se detivessem em frente à igreja branca no meio do minúsculo estacionamento, com seu gramado bem cuidado e o bonito quadro anunciando o horário da ecola bíblica dominical e do culto. Encimando o pequeno quadro de avisos, o nome “Igreja da Comunidade de Ashton” e, em letras pretas desenhadas às pressas sobre o fosse o que fosse que estivesse escrito ali, as palavras “Henry L. Bushe, Pastor”.

        Olharam para trás. Da alta colina, via-se toda a cidade se estender até cada um de seus limites. A oeste, brilhava o parque cor-de-caramelo; a leste, erguia-se o campus imponente e conservador da Faculdade Whitmore; ao longo da Rodovia 27, da rua principal ao centro, erguiam-se os prédios comerciais, as pequenas filiais de famosas cadeias de lojas, alguns postos de gasolina batalhando por conquistar fregueses com ofertas especiais, uma loja de ferragens, o jornal, diversos estabelecimentos pequenos de comerciantes locais, Daquela posição, a cidadezinha  parecia tão tipicamente americana – pequena, inocente e inofensiva como o pano de fundo dos quadros de Norman Rockwell.

        Os dois visitantes, porém, não se valiam apenas dos olhos para perceber as coisas. Mesmo daquela posição privilegiada, o verdadeiro substrato de Ashton pesava muito em seu espírito e mente. Podiam senti-lo; inquieto, forte, crescente, bem planejado e cheio de propósito... um tipo de maldade muito singular.

        Não eram avessos a indagar, estudar, investigar. Na maioria das vezes, tais atividades faziam parte de seu trabalho. Assim, nada mais natural que hesitassem diante dessa tarefa ao se perguntar: por que aqui?

         Mas só por um instante. Talvez fosse a sensibilidade aguçada, o instinto, uma impressão muito leve só a eles discernível, suficiente, no entanto, para fazer que de repente se escondessem no canto da igreja, confundindo-se com a parede chanfrada, quase invisíveis no escuro. Nada diziam, não se moviam; apenas observavam com olhar penetrante alho que se aproximava.

         A cena noturna da rua tranqüila era um mosaico do intenso luar azulado e de sombras imprecisas. Contudo, uma das sombras não oscilava ao bento como as das árvores, tampouco era estática com as dos prédios. Rastejava, tremia, avançava em direção à igreja, enquanto a luz que atravessava parecia desaparecer em seu negror, como se fosse uma fenda rasgada no espaço. Mas a sombra tinha forma, a forma animada de uma criatura qualquer. Quando se aproximou da igreja, ouviram-se sons: o arranhar de garras no chão, o leve farfalhar de asas membranosas adejando ao vento acima de seus ombros.

         A criatura tinha braços e pernas, mas, ao cruzar a rua e subir os degraus na frente da igreja, deu a impressão de se mover sem a ajuda deles. Seus olhos malévolos e esbugalhados, dotados de brilho próprio, amarelado, refletiam a luz azulada e pura da lua cheia. A cabeça retorcida emergia de ombros encurvados enquanto baforadas de hálito rançoso saíam em chiados penosos pelos vãos entre fileiras de dentes afiados e pontiagudos.

         Ou ela ria ou tossia – a respiração arquejante que lhe escapava do fundo da garganta poderia ser qualquer das duas coisas. Da posição rastejante em que se encontrava, ergueu-se sobre as patas e correu os olhos pela tranqüila vizinhança , as bochechas pretas e rígidas repuxando=se em riso horrendo, a própria máscara da morte. Encaminhou-se para a porta da frente. A mão escura atravessou-a como o espeto a um líquido: inclinou o corpo para a frente e penetrou na porta. Mas só a metade.

         Súbito, como se colidisse com uma parede em alta velocidade, a criatura foi lançada para trás, despencando com fúria escada abaixo, o hálito brilhante e rubro desenhando espirais no ar. Com um berro sinistro de raiva e indignação, ergueu-se da calçada onde se estatelara e fixou os olhos na estranha porta que lhe barrara a passagem, Nesse momento, as membranas de suas costas comeram a erguer-se, apossando-s de grande massa de ar. Com enorme alarido, voou de cabeça para a porta, rumo ao saguão – e para dentro de uma nuvem de ardente luz branca.

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⏰ Última atualização: Feb 07, 2015 ⏰

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