Capítulo único.

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"
Nada é tão importante quanto sua felicidade, nem mesmo minha vida."

Essa foi a última coisa que Vale disse à Valir, antes que o mesmo partisse para sempre do reino do fogo em seu exílio.
O vento arrastando a areia das dunas do deserto sempre o faziam lembrar dele, para assombrá-lo como numa maldição. A frase marcante continuava vívida em sua cabeça, recordada em alguns momentos para aquecer seu coração solitário, mas em outros; apenas para alimentar as chamas crescentes de seu ódio. Ainda ás vezes esse dualismo de sentimentos simplesmente surgia sem significados, complexos demais para que pudessem ser de fato sentidos.
Ao contrário do que muitos acreditavam, nem só de raiva e vingança o príncipe do fogo era feito. Também havia a mágoa, a tristeza, a solidão... a saudade. Mas era orgulhoso demais para dar atenção a este último, em especial.

Sua caminhada no deserto já durava dias e estava ficando sem mantimentos. Um simpático velho viajante o disse que uma forte tempestade de areia estava vindo e que devia parar na vila mais próxima se quisesse abrigo. E em resumo, era por isso que Valir rumava para as ruínas de Jagyia.
Assim como o reino do fogo, Jagyia foi uma terra rica e próspera um dia. No entanto, diziam que um evento da natureza arrasou seus templos sagrados e levou tudo de precioso consigo, impedindo a cidade de se reestabelecer para todo o sempre. No presente, o que havia sobrado das ruínas era lar de desordeiros, sem-tetos e viajantes. O único lugar à seu alcance.

Conseguia visualizar as colunas que haviam sobrado dos templos há quilômetros, com receios de não chegar lá antes que anoitecesse. Afinal, o frio do deserto era seu inimigo natural. Se focou em andar mais rápido, ignorando sua sede e o Sol ardente acima de sua cabeça.
O caminho árduo o distraiu.




"-É assim que pretende governar seu reino? Fugindo das aulas de economia?" - Vale apareceu repentinamente, como se já soubesse onde estava.

A biblioteca da vila dos ventos era enorme, talvez tivesse o dobro do tamanho da do reino do fogo. As idas do rei Flames até o reino vizinho apenas davam oportunidades à seu filho Valir de sair para explorar o novo terreno. Afinal, o castelo de Vents era grande demais para que se preocupasse unicamente com suas aulas semanais.
O príncipe Vale não desaprovava o comportamento do amigo de infância em suas terras, mas tinha uma série de códigos de conduta à seguir como anfitrião do outro príncipe.

"-
O que aprendi até agora é que sempre que ultrapassar as verbas do palácio, devo aumentar os impostos do povo." - o rapaz de cabelo em tons quentes respondeu à Vale, enquanto lia um livro debruçado preguiçosamente sobre uma das mesas da biblioteca.
"- Não seja mesquinho. Líderes sábios dizem que cada reino merece o povo que tem. É isso o que tem a dizer do reino do fogo?" - e debochou, sentando-se sobre à mesa, ao lado do outro rapaz.
"- Sabe, sua brincadeira pode ser
confundida como uma afronta desrespeitosa à níveis de traição para o povo do fogo. Por acaso quer acabar com o belo tratado de convívio que nossos pais lutaram para construir?"

O príncipe de pele dourada e cabelos brancos como neve riu nasalado, empurrando o amigo de maneira descontraída.

"- Como se eu pudesse. Sei que me venera demais para preferir viver longe de mim."

Valir rolou os olhos, voltando a concentração à leitura.
Flames e Vents eram amigos de infância e os respectivos reis de seus países. Era de se esperar que Vale e Valir
também cresceriam juntos, estabelecendo uma forte amizade assim como seus pais. A relação dos garotos era bem vista pelo povo, afim de fortificar alianças entre os países por mais uma geração.

"-
Hunf. Acho que está dizendo ás coisas ao contrário."- e o príncipe do fogo não se deixou abater com a provocação.

Vale sorriu sereno, enquanto o amigo se perdia na escrita arcana, uma de suas obsessões.
"Sim, está certo.", e a frase do príncipe dos ventos se prendeu em sua garganta como um nó, respondida apenas em sua imaginação. Seu coração bateu forte por alguns segundos, o inocente rapaz já não sabia mais o que fazer para evitar aquele tipo de pensamento.

Vale nunca disse à ninguém, mas a presença do amigo de infância o deixava confuso.

A sensação de calor que Valir trazia consigo
para aquecê-lo pareciam deixá-lo cheio de incertezas há um tempo. Não havia um quando numa linha de tempo, sequer uma pesquisa à fundo de algum momento que podia tê-lo feito mudar de ideia sobre a amizade que tinham...mas ele sabia que havia algo no fundo de seu âmago o preocupando sobre como enxergava Valir. Para falar a verdade, algo que ele sempre suspeitou estar lá...

"-Você ainda vai comparecer á mesa de jantar, certo?" - mudou de assunto, engolindo em seco e afastando as ideias. "- Quando vem para a biblioteca é como se entrasse em um mundo paralelo e esquecesse tudo ao redor."
"- Não se preocupe, com certeza não vou ignorar as costelas do javali gigante que seu pai caçou hoje." - e riu, olhando para Vale
.

Uma cumplicidade doce pareceu dominar o ar, deixando os rapazes tranquilos e relaxados até no silêncio. Naquele período valioso em que compartilharam espaço,
Valir leu seu livro e Vale fez de tudo para poder ler Valir.







Os primeiros grãos de areia batiam na carruagem com o brasão da realeza, indicando que a tempestade enfim havia se iniciado no deserto, para o infortúnio do rei, pego de surpresa.
Os cavalos ficaram agitados, impedindo a guarda real de prosseguir com a viagem.
Batidas vindas do lado de fora da carruagem fizeram o soberano dar permissão a seu escriba para abrir a porta, e logo, um general se apresentou se reverenciando.

- Meu senhor, a tempestade de areia vai piorar. - iniciou em voz alta, sendo cortado pelo forte som da ventania. - Não há uma previsão para seu fim e os guardas e os cavalos podem se asfixiar sem um abrigo apropriado. O que devemos fazer, vossa majestade?

O leste ainda estava distante e aquele rei não era o tipo de homem que colocava a vida de seus subordinados em risco por motivos fúteis e ambiciosos.

- Existe algum lugar aonde podemos nos abrigar? - foi a primeira coisa que perguntou.
- Alguns guardas que já moraram nas redondezas disseram que existe uma vila abandonada chamada Jagyia, mas que o lugar é recheado de marginais. - o general foi sensato.

No entanto, nada era temível o bastante para o rei Vale, o único herdeiro da vila dos ventos.

- Pois então mude o curso para Jagyia e cubra o rosto dos animais e da guarda com lenços enquanto estivermos em céu aberto. Por ora, vou me certificar de que consigamos chegar lá em segurança. - avisou, erguendo-se de seu assento.

Como ordenado, os soldados cobriram a face dos cavalos com lenços e se protegeram, para que pudessem respirar. O rei tomou a frente, deixando-se enfim levitar do chão, numa rara demonstração de poder. Isso sempre deixava seus subordinados atônitos, como se fossem hipnotizados pelos dons de seu líder e estivessem perto de ver as habilidades de uma divindade.
Talvez fosse por isso que Vale preferisse não expor seus talentos ao povo, para não ser visto como uma criatura divina. E apesar de acreditar que não tinha o direito de domar as forças da natureza, aquela era uma emergência. Seus olhos brilharam quando moveu os braços em movimentos circulares para controlar o vento ao redor de sua guarda. A ventania desordenada ao redor deles pareceu encontrar uma sincronia, assustando-os. O vento os impedindo de passar parou, afinal, Vale criou uma espécie de ciclone á volta da guarda como se fosse uma cúpula que os protegia do lado de fora da tempestade. Podia se dizer que eles estavam sob o olho de um furacão, seguros, como o rei havia garantido.

- General, guie a tropa. - o rei avisou, despertando o soldado do transe. - Vou manter o ciclone até estarmos perto da vila. Vamos descansar lá esta noite, até a tempestade passar.

A situação ainda parecia irreal aos olhos da guarda, admirados.

- S-sim senhor. - mas o general não vacilou por mais tempo, querendo manter a mesma postura imponente do rei.

Vale acompanhou seus soldados pessoais do alto, enquanto voava mantendo seu ciclone.
As ações eram tão comuns para si que agora seu controle surgia quase de maneira espontânea. Era até difícil de acreditar... nem sempre foi assim.



"- Patético." - a voz jovial de Valir zombou de si.

Devia ser sua décima tentativa de criar um ciclone pequeno.
Bem que seu pai dizia que ele era a negação da família Vents, mesmo sendo o único com o poder de controlar o vento...

"- Dessa vez foi quase." - ofegou, sem perceber o quanto aquilo era realmente cansativo.
"- Um quase não é motivo de vitória."
"- Você fala como se fosse o melhor mago do reino." - e Vale desdenhou.
"- Ei, eu não disse isso para irritá-lo." - mas Valir se defendeu depressa, tão pavio curto quanto. "-O que quer que eu faça? Contemple seu fracasso?! Esqueça. Sempre que falhar e alisarem sua cabeça nunca vai estar pronto para ser um guerreiro de verdade."
"- Está falando como meu pai agora." - o príncipe do vento fez uma negação. "- No mais, eu só queria te mostrar o que aprendi na academia. Não aja como se isso fosse importante."
"- Essa é a nossa vida. Sermos fortes para comandar o reino é tudo o que temos." - e Valir o pegou de surpresa.

Deveres reais e responsabilidades não eram o tipo de coisa da qual o príncipe do fogo tinha apreço normalmente, mas ele sempre considerava a força um dos pilares cruciais durante o governo de um soberano. Vale era desleixado nesse quesito, pouco preocupado com a força e mais interessado na justiça. Era mesmo patético... como citado, ainda era o único da família com o dom de comandar o vento. Ser rei era o único motivo para ter nascido.

"- Ás vezes eu queria ser como você Valir..." - e confessou, distante. "-
É talentoso naturalmente e parece que nasceu com tudo o que precisava para comandar seu reino. Fogo impõe moral e respeito. Já o vento, sutileza e frescor para os piadistas." - comentou, como havia ouvido de muitos guardas e criados falando entre si ao longo de sua vida. "-Pelo visto vou ter de treinar incansavelmente se quiser que pensem que ao menos tenho culhões..."- zombou de si mesmo, sem se importar de se expor negativamente para o amigo.
"-
Vai se foder." - e Valir o deu um soco na boca do estômago, o fazendo tossir e perder o ar. "-Nunca mais diga uma besteira dessas!"

O ato brusco e repentino assustou o príncipe do vento, o deixando irado. Por que Valir havia feito algo tão estúpido?! Sua barriga doeria por dias...
No entanto, a expressão furiosa do rapaz de cabelos de fogo não mudou um centímetro.

"- Diferente do vento, que até no olho de um tornado encontra alento, o fogo é sempre destrutivo. Incontrolável." - a voz soou rouca. "- E não importa o quanto você tente pará-lo, no fim, ele fere á todos porque só existe para isso."


O rapaz de pele morena foi desfazendo as feições de dor, como se não compreendesse o relato do amigo. Ele não havia visto as coisas por aquela perspectiva e saber que aquilo feria Valir - tão imune à dor sob seus olhos -, de alguma forma também o feria.

"-
Mas o fogo também é acolhedor. Ele aquece os mais frios, dá luz aos perdidos e força aos desprotegidos." - disse baixo, o consolando. "- É por isso que eu gosto do fogo."

As palavras apenas saíram, camufladas mas tão cheia
s de profundidade. O nervosismo atingiu Vale em cheio, sem saber o que fazer para sair daquela situação estranha e cheia de entrelinhas. Foi a vez do rapaz do país do calor se sentir perdido, até mesmo tímido por ouvir palavras estúpidas como aquela. Ele só fez uma negação e se afastou:

"- Faça seus malditos ciclones." - falou, dando passos adiante.

Vale sentiu alívio por ter passado batido.
Moveu as mãos, se concentrando para controlar o vento erroneamente mais uma vez.

"-... eu também gosto do vento, Vale" - mas avisou, longe de olhá-lo nos olhos. "- O vento é livre."

Um sorriso involuntário surgiu na face do rapaz de cabelos brancos, que fez o que pode para se concentrar exclusivamente em suas habilidades.
Bons tempos...


... mas Valir estava errado sobre uma coisa.
O fogo realmente era destrutivo e feria à todos, no entanto, aquela maldita noite o vento os feriu e os separou.


(...)


Haviam alguns espertalhões em Jagyia.
Com a chegada rotineira de viajantes do deserto e até de mercenários, era de se esperar que em algum momento alguém teria a brilhante ideia de construir uma estalagem caindo aos pedaços naquele vilarejo nada atrativo para ganhar a vida. Ao menos ali Valir teria uma cama para dormir, então só tinha a agradecer.

- Se quiser comer vá para a taverna, é tudo o que temos por aqui. - uma mulher desdentada avisou, enquanto o tirava a chave de seu aposento de um molho pesado.

O homem não disse nada, apenas se recolhendo em seguida na direção do aposento. Não tomava banho à dias, seus pés estavam cheios de feridas e estava desidratado. Precisava de uma boa dose de descanso.

A condição da água na batina não era das melhores, parecia que havia sido usada ao menos uma ou duas vezes por hóspedes anteriores. No entanto, aquela foi a menor das preocupações. Depois do exílio e depois de roubar a magia do arcano de um mago poderoso que o caçava até os dias atuais, conseguir uma água parcialmente potável para se lavar era um verdadeiro luxo. Sentia que havia areia dentro de lugares que ele nem gostava de imaginar...
Enquanto nú, deixou que seu corpo se aquecesse para esquentar a água da batina, para relaxar os músculos. Quando a água passou a borbulhar, sentiu que havia chegado à temperatura que queria de forma satisfeita. Suspirou e apoiou os braços nas laterais da grande bacia, deixando a cabeça tombar para trás. Era bom demais para ser verdade.




"-Quente, quente, quente!" - Vale ladrou em meio as bolhas da banheira da realeza, no palácio do fogo.

Ir para a sala de banho era uma aventura.
A banheira do rei Flame
s estava mais para uma piscina. Vale e Valir gostavam de passar o tempo na água se divertindo na infância, logo, pareceu uma boa ideia repetir a dose agora ao fim da adolescência pela nostalgia. Ou ao menos até que o príncipe fogo tivesse a brilhante ideia de aquecer a temperatura da água.

"- É difícil de controlar." - avisou. "- Não é como se eu tivesse um termostato enfiado no rabo que me avisa quando devo parar de ficar quente."
"- Eu reclamando de dor não é um aviso suficiente?!" - e o príncipe do vento deu uma gargalhada gostosa. "- Moramos no deserto, definitivamente não precisamos de banhos quentes..."

Para Vale era fácil falar. Valir era atraído pelo calor, para ele era normal.
Mas ele apenas riu de volta e se distraiu nadando pela extensão da banheira. O fato de estarem sem roupa não pareceu um problema... ao menos para o rapaz de cabelos laranja. Era como se Vale estivesse petrificado naquela quina da banheira, sem coragem de se mover. Isso não passou batido para Valir.

"- O que é? Só eu vou nadar?" - o questionou
, jogando os cabelos molhados para trás.
"- Ah... estou bem aqui." - e Vale disfarçou, dando de ombros.
"- Não me diga que está com vergonha de ser visto pelado." - riu maldoso. "- Por acaso não conseguiu crescer aí embaixo e está embaraçado?"
"- Eu cresci." - corou, envergonhado por tocar no assunto tão pessoal.
"- Só não quero nadar."

Ele não se tocava do quanto estava sendo evasivo? Valir o deixava estranho e ainda tinha a brilhante ideia de tomar banho com ele! Era difícil para Vale lidar com aquelas situações que mexiam com seu psicólogo e... fisiológico.
Quer dizer, Valir tinha um rosto e corpo bonitos e Vale era um rapaz com hormônios á flor da pele! Estava morrendo de vergonha de ser visto naquela situação tão humilhante. Se fosse descoberto, jamais poderia arrumar uma explicação para o acontecido. Precisava ganhar tempo...

"- Estou indo aí te puxar." - mas o príncipe do fogo arruinou seus planos, o deixando em pânico.

Foi como se uma mini guerra acontecesse naquela banheira. Enquanto Valir ria e o puxava de lado, Vale se segurava pelas bordas, relutante e desesperado para se esconder.
Num ato impetuoso, o garoto de cabelos brancos se descontrolou e jogou uma rajada de vento contra o amigo de infância, o fazendo se afastar metros longe.

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