ANTES
É injusto olhar a vida pelos olhos de outras pessoas, Cecília pensa.
Em alguns momentos, ela agora consegue entender, precisa tomar decisões sozinha. Por mais conselhos, opiniões solicitadas ou não, há um ponto no qual você diz sim ou não e isso define todo o rumo da sua vida.
Há 20 anos Cecília vem colecionando seus "nãos". Por tempo demais, se viu recusando qualquer coisa que lhe retirasse da sua zona de conforto. Esse é o seu primeiro "sim" e não terá volta. As passagens estão compradas, o futuro está implorando para que ela o encontre, e Cecília não tem vontade de destruir mais uma das suas grandes oportunidades por medo. Apesar de ser ele quem a obriga a mudar tão radicalmente seu posicionamento.
Cecília cresceu com medo.
Namorou com medo.
Terminou a faculdade com medo.
Arrumou o primeiro emprego com medo.
Tudo sobre o medo, nada sobre ela. É refém do que construiu dentro de uma grande redoma de pavor. E se ele me encontrar na padaria? Se estiver do outro lado da rua quando eu atravessar? O que vai fazer comigo? Fará alguma coisa?
Considera-se uma grande covarde, mas pelo menos tem argumentos para isso.
Um dia, quando tinha 7 anos, um policial foi até ela. Cecília e suas irmãs estavam com a babá que nunca saía da frente da televisão e Cinthia foi abrir a porta. Ele não esperava o que encontrou. Três garotinhas idênticas, com vestido de pano costurado à mão e os olhos brilhantes e confusos em sua direção. Então o policial chamou Joice, a babá, e conversou com ela. Quando a adolescente as olhou de volta, seus olhos tinham mudado. Neles estava refletido o sentimento que estaria nos olhos de todos que as olhassem a partir daquele instante. Não importa o quanto o tempo passe, porque sempre que descobrem seu passado é dessa forma que lhe encaram. Coitada. E Cecília acreditou, porque é mais fácil errar quando se pode culpar uma terceira pessoa. Reprova na quarta série porque a mãe morreu. Leva um fora porque é tímida demais já a mãe foi morta por um assassino terrível. Não fale assim com ela, Cecília tem um passado horrível.
Tudo volta para lá.
Tudo chega naquela noite mais uma vez.
No vento frio de junho. No aperto de mãos das irmãs que ninguém sabia o que seriam no futuro. No orfanato da igreja, na comida ruim, nas despedidas. Em Cinthia, acenado e chorando, largando tudo que conhecia por quase 8 anos e entrando em um mundo que não lhe era nem um pouco familiar. No choro alto de Cassandra, agarrada em suas pernas, implorando que Cecília não fosse embora também.
A irmã mais velha, por dez minutos antes de Cinthia e quase quinze para Cassandra. Acha que deveria ser ela aquela que buscaria pelas irmãs e as protegeria do mal do mundo. O problema é que sempre teve medo. Hoje tem mais medo ainda. Ele não tem um rosto, cheiro ou textura, o medo é invasivo e desconexo. Irracional.
Cecília possui inteligência suficiente para saber que entrar naquele avião não irá cessá-lo, não completamente, mas vai destruir seu temor em função delas. Seu desejo de protegê-las que nunca morreu, mas ela garantiu que ficasse atolado dentro do seu peito, enchendo a cabeça com outras obrigações para que pensar em suas irmãs fosse o último dos meus problemas, mas sempre foi o primeiro.
Tem certeza de que ficarão bem quando a distância de São Paulo for grande e a chance de alcançarem o passado for mínima. Amanhã de manhã será ela, Cinthia e Cassandra. Estará liberta das amarras de uma vida medíocre. Seus irmãos adotivos não perguntarão mais nada e seu melhor amigo não vai mais precisar lhe defender como se ela fosse um cachorro abandonado. Porque nunca, nunca, foi abandonada. Roubaram o acolhimento dela. Por todos esses anos, o mais confortável que ficou foi dentro de um carro de uber que lhe lembrava do cheiro da mãe, a verdadeira, não aquela que cobrava dela uma cintura fina dentro de um vestido apertado para lhe apresentar a mais um homem rico. Não. Está falando de uma vida com as pessoas certas, que sentem sua dor, que não reclamam por ter investido dinheiro demais para a profissão que ela escolheu. Finalmente, tudo vai ficar bem, pela primeira vez em 20 anos.
Passa das 18h e Cecília entra no ônibus lotado que pega todos os dias, agradecendo por nunca mais ter que entrar aqui a partir de amanhã. Às 9h30 sai seu avião para a Argentina. Não fala espanhol, não entende a cultura e muito menos sabe se vai gostar da comida, mas tem certeza de que o novo lhe animará a recomeçar. Não tem mais 7 anos, nem suas irmãs. Não são mais as pobres coitadas. Ela quer um local cheio de gente que não sabe quem são.
Desce no ponto de costume, a duas quadras do quarto que alugou, e pretende tirar todas as coisas que empacotou de lá. O frio chicoteia seu rosto, uma chuva rala pousa em seus cabelos porque esqueceu o guarda-chuva na escola, mas nunca mais vai voltar para buscar.
Sabe que vai sentir falta de dar aula, gosta dos seus alunos, mas não tanto quanto pensa que precisa gostar de si mesma. Não suporta mais a inércia, ficou nela por tempo demais, e acaba de desligar o piloto automático de sua vida. Pega o medo na mão. Nesse segundo, Cecília trata o medo feito um cachorro.
As mãos nos bolsos da jaqueta jeans não são o suficiente para que fiquem aquecidas. Seu corpo treme inteiro, mas não é só pelo frio de 7º que faz na cidade, esse frio na barriga é o do pavor. O medo tenta escapar. Já sentiu isso muitas vezes na vida, reconhece.
Isso porque o medo deixou de ser apenas esse vazio e tomou uma forma, alguns dizem que é mais fácil enfrentar algo que pode ver. O problema é que ele tem um rosto familiar e está vindo em sua direção, dentro de um casaco grosso e vermelho, com uma touca branca e um sorriso enorme. O medo agora lhe toca o ombro, gentil, e olha para trás. O medo tem perfume doce e hálito de menta. O medo, ele coloca um pano em seu rosto e a impede de gritar. Tem a sua altura, mas mais força que ela. Nunca, em toda a sua vida, Cecília sentiu tanto o medo.
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Não Deixe a Puta Morrer
Mystery / Thriller[VENCEDOR DO PRÊMIO WATTYS 2021] - CATEGORIA MISTÉRIO/THRILLER +16 O caso de sequestro não era responsabilidade de Laura dias, mas quando o corpo de uma das vítimas é encontrado sem os dois olhos abaixo do Viaduto Santa Ifigênia, em São Paulo, a in...