O canário das flores

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      A manhã daquela quarta feira estava de trincar os dentes. A tempestade havia deixado para trás galhos quebrados e poças do tamanho de bovinos no chão lamacento, tudo oculto por uma densa cortina de névoa e orvalho que dançava lentamente sob um céu carregado de nuvens tão escuras que mal via-se os primeiros feixes azuis do dia. 
      Tão longe quanto a cidade mais próxima, estava aquele pontinho no meio do nada. Uma luz amarela destacava-se no sertão verdejante, bem no pé de uma serra, tão ínfima que não passava de um vagalume inerte na grandiosidade da mata. O galo cacarejava e as vacas mugiam no velho curral do casebre dos Alves, escondido da vista das estradas de terra batida e dos campos de pastagem.
      O senhor Márcio terminou de coar o café, e enroscando a tampa da garrafa quase até o fim, serviu-se de um copo. Contraiu os lábios quando lhe veio o calor á boca e o forte gosto na língua. Colocou o copo sujo na pia da cozinha, apertou o cinto de couro gasto contra a cintura enquanto lançava o chapéu de pano desbotado na cabeça. Atravessou a sala de estar pequenina até a varanda e contemplou os ventos gelados da manhã, roçando na pele queimada pelo sol, dura com a obstinação dos anos. O terreiro estava inundando com a relva molhada. O curral ficava na entrada do velho casebre. O filho Lucas já havia apartado as vacas e o leite chiava ao bater contra os baldes metálicos.
      — Como ela tá hoje? Essa bicha aí não deu meio balde ontem. — Disse enquanto fechava a porteira. Logo ao lado havia um banquinho de madeira de uma só perna em uma das estacas. Lançou-lhe a mão calejada.
      — Tá melhor hoje, mas ainda acho que nois devia vender ela logo. Tem aquele cara do açougue que disse que paga bem por ela. Dá pra vender melhor no tempo das água. — Mais leite jorrou no balde enquanto falava.
      — Eu vo falar com o Adalberto pra vir buscar ela aqui. Num tá prestando então num serve. — Disse o velho senhor, ajeitando o banquinho na terra do lado de uma vaquinha baixinha, gorda e com longos chifres.
      — Tiro sua razão não pai. — O leite miou nas tetas. Lucas se levantou, o banquinho preso por uma fita de couro curtido ao redor da cintura, a camisa suja de lama e esterco. Um canário piou longe, cantarolando uma melodia lenta e sonolenta.
      — Bem, vamo ver se vai ter jeito de ir lá. O tempo tá prometendo chuva de novo.
      — Pelo menos é bom pro pasto e pra represa. Tava mesmo precisando de uma água. — O filho deu de ombros, caminhando para outra vaca, o bezerro ao lado, amarrado por cordas, lutando pra alcançar as tetas.
      — Não sei não meu filho. O velho Bruxo contou pra mim que são sinais filho, sabe. Que o tempo tá mudando e escurecendo. Os dias tão menores e as noites tão ficando mais escuras.
      — Aquele homem lá é que num é boa coisa pai. O senhor num devia estar indo lá.
      — Ele faz muito ajudando com os chás dele quando sua mãe tá passando mal Lucas.
      — Ele parece meio fora da casinha sabe? Com aquelas roupas esquisitas que tá sempre usando e aquele jeito de falar.
      — É o jeito dele. Ele num faria mal há uma mosca. — ele pigarreou, meteu as mãos na teta da vaca leiteira que escolhera — mas concordo que aquele homem é diferente. Tem uma coisa nele. Uma sensação.
      — Eu lhe falo pai, aquele homem lá é feiticeiro. É do Coisa Ruim.
      — Ah, deixa de bobagem Lucas! O homem só é estudado em planta e sabe fazer uns xarope bom. Larga a mão de ser besta. — O senhor Márcio rosnou, a cabeleireira grisalha no rosto escondendo a pulga atrás da orelha nas feições. Era bem verdade que o velho que morava depois da colina, na antiga casa dos Rosa, era um sujeito incomum, inexplicável por meios normais. Por vezes podia jurar que vira retratos se mexerem nas colagens dos jornais enquanto ia até lá pedindo remédios. E mais de uma vez saiu a esmo na noite fria com os clarões vermelhos provocados pelo que devia ser uma serra toda em chamas, para depois de escalar a colina ver a escuridão total engolir o vale.
      Com o fim da conversa os dois seguiram trabalhando em silêncio e mesmo que Lucas fizesse menção de puxar um ou outro assunto Márcio fazia pouco caso, não estava de humor para papo. Longos minutos seguiram-se assim, e talvez uma hora tivesse passado quando ela apareceu no horizonte. Lucas foi o primeiro a ver:
      — Tá esperando visita meu pai?
      — Eu não — ergueu os olhos para a estrada de terra que dava direto no terreiro e atravessava pelo curral, até a represa. Uma figura vinha caminhando lá de cima, uma forma feminina.
      — Quem que é hora dessa? E apé ainda. Vê lá pai. 
      — Deve tá querendo informação ou o carro quebrou. — Ergueu-se — Eu vou vê quem que é. — Disse, desamarrando o banquinho da cintura. Assim que o fez caminhou até a porteira para receber a visita — dia!
      — Bom dia! — disse com cordialidade, a luz do poste que iluminava o curral revelou-a e Márcio ficou completamente confuso. Era uma jovem de longos cabelos negros, lisos e brilhantes. A pele pálida, quase fúnebre. E embora tivesse as feições muito belas, o que chamava mais sua atenção eram as roupas. Um longo vestido amarelo de época, adornado com detalhes em renda branca, uma cartola cor de caramelo lhe servia de chapéu, pendendo da direita para a esquerda, escondendo um bocado do rosto. Trazia nas mãos uma bolsinha de moedas lilás na qual mexia sem olhar. Os dedos frenéticos. Do pescoço pendia uma corrente fina, preso nela havia um pingente que lembrava uma flor. 
      — Tá perdida moça? — perguntou Márcio sem cerimônia.
      — Acho que dá pra dizer que é o caso — ela deu um sorriso desajeitado — estou procurando a casa de um amigo da minha família.
      — Ah é? E quem é esse sujeito moça?
      — Leonel Losbalto. — Disse, e a menção do nome o senhor Márcio ergueu os olhos.
      — Você é aparentada do Leonel?
      — Eu não diria que somos parentes. Mas eu preciso vê-lo. É uma questão muito importante.
      — Sujeito estranho, ele. Bem, num é querendo ofender nem nada. Mas é um sujeito estranho. — Márcio abriu a porteira, os olhos caídos encarando-a debaixo pra cima.
      — Por quê? — Perguntou, um sorrisinho meigo nos lábios.
      — O povo aqui da região chama ele de velho Bruxo. Nome engraçado pra um senhorzinho como ele.
       — Acho que cabe perfeitamente bem na descrição dele. — Disse, sem emoção na voz — você pode me levar lá. Me mostrar a entrada?
      — Uai moça, poder eu até posso, mas hora dessa? Ainda tá muito cedo.
      — É uma questão muito importante. Das maiores, eu diria. — A moça colocava uma urgência sucinta na voz.
      — Ô Lucas! — Márcio chamou, o garoto foi rápido a chegar a porteira, como se estivesse esperando a oportunidade para ser introduzido á conversa.
      — Senhor? — respondeu, prontificado.
      — Mostra pra moça a entrada do rancho do seu Leonel e volta pra cá pra gente terminar o serviço.
      — Sim senhor. — Disse, desamarrando rápido o banquinho da cintura, pegou uma lanterna numa velha tábua pregada á altura do pescoço perto do desembargador  — me acompanha moça. Não é muito longe. — Disse, seguindo pela estrada.
      — Moça, tenho uma pergunta pra você primeiro. — Márcio indagou, ao que passava curral á dentro de novo — qual que é o teu nome?
      — É Celeste. Celeste Lacerdes. — respondeu inexpressiva, acompanhando Lucas.
     Os dois caminharam em silêncio algum tempo, Lucas nervoso com a bela mulher que seguia-o. Ela olhava encantada para tudo que via, embora não comentasse nada. Tinha olhos incomuns, cor de ouro. Aquele rapaz nunca tinha visto olhos daquela cor. Deviam ser lentes de contato.
      — Você é da capital moça? — Lucas tomou coragem pra perguntar quando a casa desapareceu na curva da estrada, atrás dos montes de terra vermelha.
      — de Goiânia? Não, não. Eu venho do Sul. Minha família é toda de lá. — Respondeu, a voz desprovida de sentimento. Tão fria quanto os ventos.
      — E o Leonel também é do Sul? É normal ter tanta roupa antiga por lá?
      — Leonel é Pernambucano. Conheceu meu pai no trabalho e os dois ficaram muito amigos. Agora papai está preocupado com ele e eu vim dar uma olhada.
      — Daqui já dá pra ver a porteira lá embaixo. Aí é só seguir pela trilha e você tá lá. — Disse logo quando alcançaram o topo de uma colina.
      — Onde está a porteira?
      — Tá ali moça! Bem ali! — Disse apontando — num fica longe. Quer que eu te leve até a casa do seu Leonel?
      — Acho que não vai ser preciso. Já consigo ver. Obrigado por me mostrar. — Celeste deu um sorrisinho gentil e então ficou emparelhada com Lucas — me responde uma coisa Lucas, muita gente visita o senhor Leonel?
      — Uai, nunca vi ninguém vindo pra cá, quero dizer, fora meu pai. E também tive pouco contato com seu Leonel, mas meu pai conta que ele vive falando do afilhado que trabalha no governo, mas nunca vi esse tal de afilhado vindo aqui ver como ele tá.
      — Notou alguma coisa diferente na noite de hoje? — Celeste não lhe encarava. Fuçava na bolsa de moedas com frenesi.
      — Não uai. Teve uma chuva danada. Daquelas que trovão treme as parede da casa.
      — Luzes diferentes?
      — Não entendi a pergunta.
      — Luzes, cores diferentes das habituais. Verdes, por exemplo.
      — Olha moça, quando chove eu vou dormir. Tem nada melhor que o barulho da chuva pra dormir não. Eu não tô entendendo mesmo é porque esse tanto de pergunta. Quem é você?
      — Desculpe. É a força do hábito. — Celeste ergueu a cabeça para encara-lo. O sorriso gentil nos lábios.
O rapaz a encarou por alguns segundos, dentro daqueles olhos dourados. Alguma coisa se mexia neles. Asas. Sim. O reflexo de um pássaro. Lucas ouviu um assovio, longe, lento e aconchegante. O pio aumentou e suas vistas escureceram.       
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⏰ Última atualização: Feb 23, 2021 ⏰

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