Caso perdido.

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{POV NARRADOR}

— Mas que papo é esse? O que deu em você, Norman?
— Você já deve ter percebido, né? — O outro se recusou a responder. — Eu armei uma cilada para três pessoas. Para o Don, eu disse que a corda estava debaixo da minha cama. Para a Gilda, eu disse que estava no teto do banheiro do segundo andar. Foi isso o que eu contei pra você, Ray. Na verdade, eu disse ao Don que estava no refeitório, e à Gilda que estava na biblioteca. E então, a corda que estava debaixo da minha cama desapareceu. Como será que estão os outros dois lugares? Quer vir comigo agora, para conferir? — Ray se deitou na cama ao lado e colocou a mão em seu rosto, ficando em silêncio por alguns segundos. Até que ele o corta, começando a rir.
— Que droga... e eu achei que estava me saindo tão bem... — Não parecia culpado ou frustrado, como se já soubesse que uma hora isso iria acontecer. Ele se sentou e ficou de cabeça baixa, ainda com um sorriso em seu rosto. — É isso mesmo. Eu sou o espião da Mama. Quando você começou começou a suspeitar de mim?
— Quando a Irmã chegou na Casa. Eu fiquei envergonhado de sequer pensar numa coisa dessas. Você foi o meu primeiro suspeito. Afinal, você é meu amigo. Eu queria muito que não fosse verdade. É a pior hipótese que eu pude conceber. Mas nada seria pior pra nós do que ter você como traidor. E nada seria melhor para o inimigo do que ter você como espião. — O mesmo estendeu sua mão. — Você esteve envolvido na elaboração dos planos. É a pessoa perfeita para controlar a situação. Não há ninguém mais adequado que você.
— E por isso, você suspeitou de mim. E foi assim que eu caí na sua cilada?
— E mais uma coisa... Ray, você não foi recrutado só para acabar com este plano, não é? — Ele se aproximou. O sorriso do mais velho já não estava lá, e ele já estava desconfiando do porquê dessas perguntas tão específicas. — A Mama nunca acreditaria numa dica súbita de um espião recém-contratado. — Se agachou, ficando frente a frente com Ray. — Há quanto tempo você é um espião da Mama?
— Há muito tempo... sou um capanga da Mama há muito, muito tempo. Sou basicamente o cão-pastor do rebanho.
— E durante esse tempo todo, você sabia de tudo e ainda ajudava a Mama?
— Sim.

{POV NORMAN}

Eu queria não acreditar. Queria que aquilo não fosse verdade. Ele sabia de tudo que estava acontecendo. Das fazendas... dos rastreadores... das mortes... e mesmo assim, quis ajudar a Mama com tudo isso. Nossa amizade foi... o que? Informações pra Mama? Uma vigia? É sério? Foi tudo... então...
— Então era tudo mentira? Todos os preparativos que Emma e eu planejamos com você? — Ele não me respondeu. Tudo que ele demonstrava era um sorriso. Mas um sorriso... mau. Um sorriso que eu não queria ver. — O quanto você já contou pra Mama? Os rastreadores podem ser quebrados, né?
— Por que está perguntando isso? Dependendo do que eu responder, vai me tirar dos planos?
— Não vou. Você continuará conosco, como sempre esteve. — Por algum motivo, ele se decepcionou com isso. Isso seria algo bom em seu ponto de vista, certo? A Mama não saberia disso. — Você devia estar feliz! Vai poder esconder dela o erro que cometeu. Você estava disposto a incriminar o Don para continuar espiando a gente, né?
— O que você quer de mim? — Ele é rápido para perceber as coisas, isso é bom; fiz um 'três' com minha mão esquerda, em sua direção.
— Três coisas. — Abaixei meus dedos, deixando apenas o indicador levantado. — Primeiro, continue andando conosco, para garantir a nossa segurança. Segundo, repasse para nós toda a informação que você detém. Terceiro, alie-se a nós. — Isso pareceu chamar sua atenção. — E se você virasse o nosso espião?
— Quer me usar como uma carta na manga?
— Sim.
— Tá maluco?! Se esse era seu objetivo desde o começo, devia ter me manipulado sem me contar nada. Bastava me usar nos seus planos e me abandonar na hora da fuga. Seria o método mais confiável.
— É, você tem razão... mas ela disse que somos família... — Eu me sentei no criado-mudo ao lado, sem tirar os olhos dele. — Por isso, mudei de ideia. Eu quero acreditar em você, Ray. Acreditar que, mais que um espião, você é nosso amigo. Além disso, foi você quem escondeu o Bernie, não foi? Na noite em que fomos ao portão, se você tivesse dito que não dava tempo, não teríamos ido até lá. Você nos levou a descobrir a verdade sobre a Casa. Você deu início a toda essa fuga para poder nos salvar, não foi? Ray, por que você é o cão-pastor da Mama?
— Por quê?
— Se estivesse cem por cento obediente à Mama, você não nos faria descobrir a verdade. Você estava nos controlando... os rastreadores, a data de fuga, o rápido progresso do plano. É por isso que você se opôs a fugir dentro de dez dias. E, ao mesmo tempo, você estava mantendo a Mama sob controle, certo? Acho que você não é nosso inimigo, Ray.
— Eu me ofereci como voluntário. Não, seria mais preciso dizer que eu me vendi pra ela. Tudo para me preparar para a fuga. — ... — A maneira mais eficiente de conhecer o inimigo e obter recursos é estar de conluio com ele. Foi por isso que eu ofereci um acordo pra Mama.
— Que arriscado...
— Mas tinha chances de dar certo. Filhos com pontuação máxima são valiosos, demandam esforço e dedicação... a Mama não colheria antes da hora. Foi isso que eu concluí. Ela liga mais para o lucro do que para as regras. Eu basicamente pedi duas coisas: em primeiro lugar, vou cooperar para não ser mandado embora. Em segundo lugar, pedi recompensas em troca de resultados.
— Recompensas?
— Bugigangas em geral. E se não existissem na Casa, eu pedi que ela as recomendasse. Queria testar o que era possível e impossível de obter... e descobrir um pouco mais sobre o mundo lá fora. E assim, ela me cedeu um monte de coisas, mas nada que fosse perigoso. Contudo, todos eram modelos antigos.
— Então, aquela sua ideia de desativar os rastreadores...
— Eu cheguei a ver o dispositivo. Fiz testes com ele, e após muitos anos, acabei descobrindo como quebrá-lo. Eu confirmei que é possível anular os rastreadores. Entendeu agora? Esta pessoa que está diante de você é a carta mais valiosa que você tem. Sei tudo sobre a Mama e os rastreadores. Sei muito mais que o necessário para fazer esta fuga acontecer. Estou me preparando desde que descobri a verdade desta Casa.
— Ray...
— Eu manipulei vocês dois para irem até o portão sem que ninguém mais percebesse. Eu fiz tudo isso pra garantir que vocês três não morressem. Como você bem disse, eu não sou seu inimigo. Mas também não sou um aliado. Tenho uma condição para me tornar a sua carta na manga. Vou te repassar tudo que eu sei, e vazar pra a Mama o que você quiser.
— Que condição?
— Engane a Emma. Finja que vamos escapar com todos, e abandone-os na hora H. Se quiser levar mais alguém, leve no máximo o Don e a Gilda. — O que... Isso não está fazendo sentido. Ele disse que fez de tudo para que nós três escapassemos, eu, Emma e Sarah, mas...
— Espere... mas e-
— A Sarah? — Assenti com a cabeça, nervoso com a resposta. Ele realmente iria abandona-la aqui? — Não podemos levá-la. Ela vai morrer lá fora.
— Mas e a coisa que você disse? Que se esforçou para que nós três vivêssemos?
— Eu me esforcei. De verdade. Mas eu tive que desistir dela. Ela é um caso perdido. Ao decorrer dos anos eu achei que ela iria evoluir igual a vocês, mas nada aconteceu e apenas mais obstáculos apareceram. Insônia, surtos de raiva, pouca velocidade, força baixa... isso vai acabar matando ela. E se for pra isso acontecer, é mais fácil que ela seja enviada. — Não... eu não quero fazer isso. Não só com a Sarah, mas com todos. Eles são nossos irmãos. Eles confiam na gente.
— Ela... eles estão evoluindo mais do que o esperado com o treinamento. Até você admitiu que eles estão correndo bem. E você estava sendo sincero, não é? Então vamos fugir ju-
— Ainda não muda o fato de que eles são um fardo.
— Você disse que ia nos ajudar...
— E estou tentando ajudar vocês. Aceite isso, ou você e a Emma vão morrer aqui.
— Eu pensei que você quisesse impedir a nossa morte...
— Assim como a Sarah, se for para morrermos lá fora, é melhor esperarmos pela nossa remessa. E então? Aceita minha condição? — Não queria que fosse assim... mas...
— Tudo bem.
— Se por acaso você mentiu pra mim...
— Eu sei, eu sei. Não foi mentira.

Patético (OC!AU)Onde histórias criam vida. Descubra agora