esse alguém é você.

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tem alguém no meu quarto.

não sei se devo ou se posso escrever isso. é desconfortável falar sobre, mas os barulhos estão começando a me incomodar. o cheiro também. é forte, quase como mofo. você consegue entender?

a calha do teto está estralando. sei que não é por conta do vento; essa coisa, você, está cutucando a madeira no canto esquerdo do cômodo. estou com medo, quero pedir que você pare - não tenho coragem o suficiente. você pode ler as minhas expressões?

tem alguém no meu quarto.

é certeza absoluta. essa sombra esquisita não pode ser fruto do minha imaginação. eu te vi abrir um sorriso e te ouvi sussurrar alguma coisa. não estou delirando. tenho certeza que tem alguém no meu quarto nesse exato momento.

estou de olhos fechados, debaixo da coberta. não é a minha melhor proteção, porém me sinto segura. está começando a ficar quente, quase impossível de respirar. a sensação é sufocante. mas não quero sair daqui. nem me mexer. principalmente agora que sei que esse alguém, você, está ainda mais próximo.

eu posso sentí-lo acariciar minha perna. o músculo endurece e eu automaticamente paro de puxar ar. quero chorar. gritar. quero que alguém me tire daqui.

tem alguém no meu quarto.

nós já nos conhecemos, na verdade. é da família. vivemos juntos durante bons anos de minha infância. eu tinha cinco anos quando tive que ficar no quarto que você dividia com sua esposa pela primeira vez. eu lembro.

tava passando popeye na televisão durante aquela noite. sua mulher, como você gostava e ainda gosta de chamar, havia acabado de dormir. então você sorriu pra mim e disse que eu poderia me deitar também. tudo bem. é um bom desenho. minha mãe e meu padrasto chegariam em algumas horas e eu podia confiar o suficiente em vocês.

hoje, escondida entre os lençóis, sentindo sua respiração contra meu corpo encolhido, o seu cheiro podre e desagradável, eu percebo que a maneira com a qual você me olhava não era natural. você não agia como um adulto, idoso, deveria agir perto de uma criança. não me abraçava ou me agradava como deveria. você nunca foi normal.

eu nunca quis que você me tocasse. mas me tocou. e agora eu mal consigo respirar.

tem alguém no meu quarto.

eu assisti esse mesmo desenho dias atrás. ouvi sobre você. vi você. e, mesmo depois de tanto tempo, não consigo não sentir refluxo quando escuto o seu nome. minha família sabe o que você fez. e mesmo assim todos ignoram a situação. vamos falar sobre sua saúde. sobre como você é um homem bom. sobre como você mudou.

eu não entendo isso. me perguntam por que deixei que você encostasse em mim. por que me mantive calada por a merda de um ano inteiro. eu não entendo porque me culpam por algo que não tive culpa. não entendo por que odeio meu corpo, por que me sinto tão suja na maior parte do tempo. não entendo por que não consigo seguir em frente e simplesmente esquecer o que fez comigo.

e já faz tempo demais, onze, quase doze anos, e eu ainda tenho pesadelos com você.

tem um homem no meu quarto.

você é a sombra que cresce e me aperta contra a minha vontade durante a madrugada inteira. quem tira meu sono e faz com que eu sinta dor e nojo de mim mesma. você, que finge sofrer e se arrepender do que fez comigo, que canta e dança e me beija o rosto quando me vê, que me abraça e diz como eu cresci e o quanto estou bonita, destruiu minha vida. destrói até hoje.

e eu nunca segui em frente de verdade. você sempre esteve lá, me rondando. preso na curva da minha memória. me traumatizando. quando é que você vai me deixar viver?

eu estou sozinha no meu quarto.

e mesmo assim, meu coração dói, aperta tanto que sinto que vai explodir. e quero chorar, mas não consigo porque tá tudo preso, entalado. e o que eu posso fazer a respeito?

não consigo mais assistir a porra da um desenho por sua culpa. não consigo olhar pro seu rosto e fingir que está tudo bem (sorria, querida. ele gosta do seu sorriso). me sinto mal por desejar a sua morte - mas desejo; porque talvez seja a única maneira de eu me sentir bem. apenas quero esquecer você. te apagar. e poder olhar para mim mesma na frente de um espelho e sorrir pela primeira vez de verdade em toda a minha vida.

eu te odeio, como nunca odiei ninguém antes.

eu tenho certeza que estou sozinha no meu quarto.

soa como escárnio. desconsideraram a minha dor; me sinto ridícula falando sobre. ainda que seja verdade.

eu vou dormir agora e torcer para não sonhar com você. vou fingir que você nunca esteve a espreita, atormentando os meus pesadelos ou me causando terror. porque está tudo bem agora. se eles esqueceram tão rápido por que eu não esqueceria?

só relaxo quando minha pele queima e você afasta a mão. é como se o tormento tivesse acabado numa metáfora esquisita e unilateral. então você se vai. e some por meses. e faz com que eu acredite que minha vida está perfeita. por alguns segundos.

mas não está. e quando você volta, a crise é pior. porque você sempre esteve lá. sempre vai estar aqui. preso em quem eu sou. em quem eu não escolhi ser.

tem alguém no meu quartoOnde histórias criam vida. Descubra agora