O cheiro de peixe frito dominava o cais. O nosso mundo era coberto de águas. O rio grande corria por todos os lados. Aonde quer que fôssemos, ficava longe o chão.
Os meninos brincavam de pular do flutuante e as meninas ficavam na cozinha ajudando a preparar a comida.
Eu estava na panela preparando as tapiocas, próxima à janela que dava para o leito sem fim de águas escuras, quando vi os botos. Sempre que os via, eu me lembrava de vozes infantis a me chamarem pequena: "Betânia, os boto!". E eles pulavam e mergulhavam à procura de alimento na superfície das águas turvas, para, momentos depois, sumirem da nossa visão. Para onde iriam? Para onde iriam os botos depois de se mostrarem?
Distraída, acabei deixando queimar uma tapioca, levando um tapa certeiro da mamãe. Chorando, fugi das broncas costumeiras e fui correndo em direção às águas. Tirei o avental e sentei-me no topo da escada que descia para o rio.
O sol já ia se pondo e eu via um poente turvado de lágrimas. Os botos sumiam e ao longe já dava para ver os barcos vindo. Eram os homens que já chegavam para a festa. Levantei-me rapidamente e voltei para a cozinha sob as zangas das mulheres e os olhares curiosos das meninas.
- Eles estão chegando.
Eu disse e voltei ao fogão para fritar apressadamente as bananas, que recheariam o pirarucu.
Marina veio, discretamente, se aproximando de mim e perguntou se eu consegui ver se ele vinha dessa vez. Estavam longe, eu não sabia dizer quem eram. Mas Marina insistia. Ela sempre esperava por alguém que prometeu levá-la embora, para os encantos do rio, e nunca mais voltou.
- Era o Boto-cor-de-rosa, Marina! - As outras meninas brincavam. E Marina se irritava. Apesar das brincadeiras, todas sabíamos que o Boto era imprevisível e a qualquer hora ele poderia mesmo subir as escadas, disfarçadamente, e entrar nas festas levando mais uma de nós para debaixo das águas.
Festa sim, festa não, meninas se vão. Mas nunca conseguíamos identificar qual dos homens que vinham era o ser mágico. Enquanto servia os petiscos, eu tentava ver o buraco na testa de algum deles, mas a iluminação era ruim. E mesmo suspeitando não dava para afirmar. A maioria apenas fazia lembrar um boto, mas era só a semelhança das caras de peixe no balançar das luzes do flutuante.
E isso era o mais angustiante, porque se um deles, que não fosse o Boto, nos levasse, não podíamos recusar e perderíamos a chance do encanto.
Quando um deles apontava e escolhia, as nossas mães olhavam para os nossos pais e já sabíamos. Tínhamos que aceitar a dança com um homem qualquer. E o baile se tornava uma agonia sem fim. O bailado era recheado com sussurros ao cheiro de escamas. E, naquele mistério, ficávamos sem saber se o homem com quem estávamos tão coladas era o Boto. Muitas de nós terminavam a festa aos prantos.
Mais tarde, quase na madrugada, chegavam mais barcos. E, nessa nova remessa, havia sempre mais chance de ser ele. Mas só tínhamos a certeza mesmo de que ele estivera ali, quando, pela manhã, uma de nós não estava mais entre nós. Foi o que aconteceu, dias depois, com Marina. E a nós, restava o sonho com a mundo debaixo d'água.
Diante da persistência do sonho, as meninas, em uma noite sem festa e sem lua, planejaram acordar juntos na madrugada e mergulhar à procura dele. Naquele mundaréu de água, levaria muito tempo para encontrá-lo. Queríamos muito ver as nossas companheiras que se foram, sem dar mais notícias, e fazer muitas perguntas. Mas ficamos com medo das águas escuras na noite e não fomos.
Eu também queria muito saber das meninas, mas nos últimos dias eu pensava em outra coisa. Eu queria fazer perguntas ao Boto. Saber dos seus pensamentos, das suas emoções. Mas, festa após festa, crescia a frustação de não ser eu a escolhida.
No crepúsculo, eu os via, em forma de golfinho se alimentando. Será que as meninas também estão ali com eles, comendo? Será que as meninas que são levadas também viram botos? Coloquei os meus pés na água e fiquei assim sonhosa. Dizem que quando a mulher está menstruada eles se aproximam. Atingida por esse pensamento, mergulhei. Quem sabe um deles fale comigo aqui?
Fiquei boiando, fingindo distração. Do canto do olho, eu os via se aproximarem. Eram cinco. Vinham saltando em mergulhos pelas águas. Meu coração acelerou. Eu seria levada pelo Boto em pleno dia? Eles me cercaram, cada vez mais de perto.
Eu fiquei parada, estirei os braços para os lados para deixar que me puxassem e fechei os olhos. Quando abri, eles não estavam mais lá. Já iam longe em direção ao pôr do sol.
- Voltem, voltem aqui! Me levem ao seu mundo!
Ouvindo meus gritos, as nossas mães começaram a chamar os nossos pais, que pularam no rio achando que eu me afogava. Nos braços deles, eu me debatia como um peixe que foi pescado.
Desolada, passei dias sem esperança, até que em uma dessas noites sem festa, deitada na minha rede, ouvi um sussurro muito perto no meu ouvido.
- Psiu, Betânia. Ei...
Muito próximo do meu rosto, estava Marina, fazendo um gesto para me calar. Um cheio forte de pitiú veio com a brisa noturna.
- Vem, vem cá...
E eu a segui. Lá fora, ela se apressava, dizendo não ter muito tempo.
- Foge daqui, Betânia, e leva as meninas contigo. O mundo do Boto é cruel. Olha para mim.
E sob a luz forte do luar, eu via suas feridas.
- Mas como... O que...
Eu gaguejava sem entender.
- O Boto é mal com nós, Betânia. Leva logo elas embora daqui. E não conta nada às nossas mães e aos nossos pais. Preciso ir...
Um movimento rápido nas águas escuras se intensificou, deixando-a apavorada. Com os olhos arregalados, ela prendeu a respiração e pulou.
Fiz um gesto de impedi-la, mas o mergulho tinha sido tão rápido e certeiro, que nem banzeiro fez no flutuante.
Mas estava ali, era a minha chance. Decidi por segui-la e ver com meus próprios olhos o mundo submerso.
Saltei de pijama mesmo e era tudo escuridão. Agucei a visão e vi em meio à escuridão um boto rosado passando. Segui-o nadando. Ele era rápido, exigindo de mim mais fôlego. Ele ia mais fundo e eu não podia desistir. Eu queria saber.
Por um momento daquela perseguição, pareceu que ele olhou para mim e sorriu. Seu sorriso parecia de gente. Estaria se transformando? Mais fundo, vi botas no lugar da nadadeira. Empolgada, continuei, estava no caminho certo.
Chegando ao fundo do rio, me espantei ao ver as minhas velhas amigas amarradas e vivas. Passei diante dos olhos delas e não pude saber se me viam naquela escuridão. Mas eu via nitidamente suas expressões de pavor. Mais adiante, vi que, Marina tentando voltar à sua posição, fora flagrada pelos botos de cara de gente.
Fui ao seu socorro, entrando em confronto com os botos, que avançaram sobre mim.
Mais de perto, vi que não eram nada parecidos com os animais saltitantes que eu via seguindo o horizonte. Seus olhares eram ferozes, parecia eu que via os homens sorridentes das festas todos ali embaixo estampando faces cruéis. Sem muito com que me defender, usei minhas unhas e dentes, arrancando-lhes pedaços. Procurei minhas mãos e não via. Procurei meus pés e não via. Girei na água e eu era um deles.
Suas caras raivosas se espantaram e fugiram. Deslizei em socorro às meninas, que mal conseguiam me enxergar. Mas puderam me ouvir e me seguiram pelo fundo do rio à procura das criaturas. Sentia que podia enfrentar. A cada um que encontrávamos, atacávamos, devorando pedaços e as meninas já eram botos.
Quando amanheceu, subimos à superfície e avistamos o flutuante com nossas mães, pais e amigas preocupadas. Cercamos o flutuante e gritamos em euforia. Vi o rosto de pavor dos adultos e o entusiasmo pueril das meninas lá em cima. Sorrindo e confiantes, com águas por dentro e por fora de nós, começamos a nos afastar e nos espalhar pelo rio, o nosso rio, iluminado pelo sol nascente.