O Dia

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Caminhei para a luz.

Click, abajur apagado, o fim de mais um dia em uma metrópole iluminada como São Paulo.

Abaixo as persianas da débil janela para ofuscar um pouco o clarão que vem de fora.

Assim que fecho os olhos me vêem imagens do meu dia que se dissolvem logo ao se formarem, perco as passadas da respiração, adormeço.

Está tudo tão normal, sonhos comuns são os mais estranhos, pois nos convencem de serem reais...

Meu celular toca. Meu chefe? Por que tão cedo?

"Alô? Diego? Cara, preciso te falar uma coisa", começou.

Percebo nesse instante algumas crianças correndo pela janela do meu quarto... Felizes por ser bem cedo, aparentemente, isso me perturbou um pouco.

"Tá na linha, Diego?"

"Sim, chefe, o que houve?"

"Sério? Não suporto mais lhe ver comendo o sabonete do banheiro, isso é inadmissível! Detergente eu entenderia, gosto às vezes, mas, sabonete? Pelo amor de Deus! Quantas vezes não lhe disse?"

Pensei... não me lembrava de nenhuma vez ter-me chamado a atenção e, muito menos de ter comido sabonete.

Continuou, "nem precisa vir buscar suas coisas, já estão na sua porta, nem precisa vir assinar nada, já temos sua assinatura. Está demitido, passar bem!"

Muito confuso e pensativo, sem saber realmente o que está acontecendo, afinal acabei de acordar, vou para a entrada de casa, tem uma caixa, aparentemente de sapato, em frente à porta... Nunca saberei como pularam o meu portão... Será que tinham uma cópia da minha chave?

Coloco a caixa para dentro, está estranhamente pesada para o seu volume.

Como puseram todas as minhas coisas aqui? Minha surpresa aumentou quando abri... duas caixas menores dentro daquela.

Retiro uma, não deve ser nada além de ilusão de ótica, mas ela quase dobrou de tamanho ao sair da caixa! O fenômeno se repetiu para a seguinte.

Chegou a hora da verdade, abro-as, na sequência em que removi da outra caixa.

Confetes... sim, como se a minha demissão fosse uma festa digna de regozijos, saíram confetes da primeira caixa.

Na segunda havia uma caneca e um porta-retrato, estranhamente sem foto.

Não vou me preocupar com isso agora, ponho as coisas em cima da mesa da cozinha, ligo a TV da sala, estou deitado.

Programas sem graça, olho no relógio: 8:30, será um longo dia sem trabalho ou nada para fazer.

Caminhei até a cozinha.

Acendi a luz mas, estranhamente ela tinha um aspecto de sépia, bem típico das lâmpadas incandescestes de antigamente, isso me deu uma sensação de aconchego por me remeter à casa da minha avó no interior, que era repleta dessas lâmpadas.

Era como se eu pudesse sentir o cheiro da comida da vovó no fogão.

Me aproximo da mesa, onde deixei a caneca e o porta-retrato, ambos normais, embora tenho vindo por uma situação adversa.

Coloco água para ferver, fogo alto, como de costume, logo ao me virar para colocar pó de café no coador, ouço borbulhas, a água estava fervendo, como nunca havia visto antes! Apago o fogo, ajeito o pó, coo... Jarra cheia de café. Preciso de uma caneca, abro a primeira porta do meu armário marrom, pratos, nada de canecas. Segunda porta, copos - lembro-me vagamente de ter havido canecas aqui antes - nada... Terceira e última, nada além de uma peça de carne que já parecia estar lá há dias, talvez esteja podre, fecho a porta sutilmente, como que para não incomodar o pobre boi de onde arrancaram essa peça.

Viro-me e vejo a mesa, sim, a mesma mesa onde está o porta-retrato e, sim! A caneca! Como pude me esquecer dela?

Pego-a e observo com atenção enquanto caminho para o fogão: "Comedor de sabonete do mês", claro, combina com os confetes.

Servi-me com uma generosa porção de café, ótimo para começar o dia...

Tive a vaga noção de que meu dia seria tedioso até quando eu repousasse de novo em minha cama.

Abri a geladeira, em busca de algo pra comer ou cozinhar, vazia, nada além de um queijo estragado e o meu notebook, tive problema com aquecimento ontem.

Sinto o cheiro do queijo e constato que, realmente, nem um louco o comeria.

Voltei, de repente, a atenção à mesa, tudo exatamente igual, como era de se esperar, exceto o porta-retrato.

O objeto que antes era vazio, sem imagem... Entretanto, agora ele tinha figura se formando em seu interior, eu me aproximei, receoso, mas, ainda assim, com curiosidade.

O Grito, Edvard Munch, sim, a pintura expressionista aparece de súbito no retrato; sempre achei esse quadro muito estranho: o que causou tanto espanto a esse homem?

Ding dong. Alguém à porta, tive um sobressalto, quase derrubei o porta-retrato, que antes prendia minha atenção, no chão.

A ida à porta foi a mais longa que já fiz, quase uma peregrinação, a tensão do momento anterior e da sincronia dO Grito e da porta me assustavam.

Abri a porta cautelosamente, ninguém. Malditas crianças, pelo menos percebi um mercado novo do outro lado da rua, isso me lembrou do problema anterior: a falta de comida, a tensão me deixou realmente esfomeado.

Apanhei minha carteira, que estava lá próxima e saí, sem fazer lista de compras nem nada, apenas pelo bel prazer de aproveitar um dia à toa.

No letreiro do mercado dizia: "Melhor mercado da Zona Leste" e "há 20 anos", essas frases me deixaram um pouco pensativo, não me lembrava desse mercado, ou seja, há três possibilidades, ou sou muito desatento ou o mercado existia, mas não aqui, mudando-se recentemente ou ainda os donos são apenas mentirosos.

Atravesso a rua sem que minha mente saia dessa dúvida, nem me dou conta de havia carros vindo em minha direção.

PÉÉÉÉÉ! Um carro grande vinha em minha direção buzinando, farol aceso, foi tudo tão rápido, mas duas coisas me chamaram a atenção: a expressão do motorista, era como se ele fosse o modelo dO Grito! Quase pude ouví-lo gritando... Outra coisa é: não, minha vida não passou pelos meu olhos o que aconteceu foi apenas ela, minha própria vida...

A luz caminhou para mim...

Meu celular toca:
"Alô, Diego? o que houve? Por que está tão atrasado??", meu chefe, nervoso, "Venha logo para o trabalho!".

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