Capítulo Sete

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Quando a terra tragou o homem encapuzado para seu interior, um barulhinho sútil fez-se atrás de um carro velho, era Nath, que observou à espreita tudo que acontecera. Seus olhos cinzentos estavam acesos como a luz esbranquiçada de uma estrela antiga, demonstrando medo e entusiasmo ao mesmo tempo: se esses dois sentimentos fossem vivos, certamente seriam como duas cobras enroscadas uma na outra, se debatendo amargamente para escapar da morte.

Depois que o chão de concreto voltou ao normal, sem nem mesmo deixar uma ruptura ou um mísero rastro do que acontecera, Nath continuou escondido, olhando atentamente o mais velho caminhar, ainda como que em transe. Dylan caminhou pelo beco e dobrou a esquina, seguindo o caminho de volta para casa, lentamente.

O fantasma continuou assombrado. Ajoelhou-se sobre o concreto que minutos atrás havia devorado um homem e encontrou, tão pequeno quanto uma formiga, um buraco. Curvou-se para frente e, com um dos olhos, tentou avistar qualquer coisa viva em gritos de desespero, jurou ter escutado alguma coisa.

Então, sem pensar duas vezes, ele se desfez em uma fumaça cinza e passou pelo buraco. Seu corpo deslizou facilmente entre os pedregulhos do estreito buraco até chegar nos restos mortais do encapuzado - seu corpo estava estranhamente fundido nas rochas, mas seu coração ainda batia.

O homem abriu seu olho esquerdo: os vasos sanguíneos estavam estourados e o sangue havia se espalhado sobre toda a parte branca do globo como tinta em uma tela.

Ele tentou falar, mas tudo que saiu foram gemidos. Nath tocou na bochecha ensanguentada do moribundo e disse:

- Você está sofrendo...

Foi tudo que conseguiu dizer. Sob aquelas palavras tão frias de um menino amedrontado, o encapuzado deu seu último suspiro de desesperança e abraçou a morte.

...

O mais novo voltou então a seguir Dylan na superfície. Assim que o mais velho chegou no portão do condomínio, Nath observou que ele sentiu os joelhos fraquejarem e então ficou parado um tempo.

Assim que Dylan sorveu o ar pela boca, sentiu um alívio nos pulmões, como se houvesse corrido uma maratona e tivesse parado para respirar pela primeira vez depois de cinco quilômetros percorridos. Levou um tempo para abrir a porta, um pouco mais para encontrar o caminho até o banheiro. Seus olhos ardiam e seu coração lutava para se auto apunhalar.

- O que está acontecendo comigo... - repetia para si, em um murmúrio cansado e agonizante - Por favor... por favor.

O vidro da televisão trincou e a lâmpada estourou como fogos de artifício. O quarto parecia girar e ao mesmo tempo se distorcer. Dylan tentou se manter de pé e recobrar novamente os sentidos, mas uma intensa dor brotou lá no fundo do peito, uma dor isolada e descontrolada.

Nath surgiu abruptamente ao seu lado, após atravessar o espelho pendurado na parede.

- Dylan! - Chamou o fantasma, mas de nada adiantou, o garoto parecia não ouvir nada além dos próprios pensamentos.

De súbito, uma cor branca se apossou dos olhos de Dylan e seu olhar ficou perdido, completamente em transe. Nath se encolheu e, segundos após, aproximou-se do menino, sussurrando bem baixinho:

- Dylan... seus olhos... ei! Consegue me ouvir? Consegue me ver?

Como um túnel escuro e úmido, Dylan sentiu ser sugado para seu interior. Estava tão fundo dentro de si que pôde ver tudo aquilo que escondia de todos... Tratava-se de algo grande e forte.

Um som entrecortado reverberou e um eco profundo e doloroso apertou-lhe o peito com força. Era a respiração de alguma coisa, a respiração de um monstro.

...

- Ei! Acorda! - Gritou Nath.

Dylan despertou no chão frio e molhado do banheiro. Parecia ainda um pouco confuso, mas conseguiu se apoiar sobre os joelhos e se levantar.

- Nath, que bom te ver, por onde você andou?

- Ah... é... Bem, não importa agora também. O que aconteceu com você? Por que não me respondia? E por que caiu no meio do banheiro do nada?

Dylan não sabia como explicar para o pequeno fantasma o que estava acontecendo. Ele não sabia como havia chegado ileso em casa naquela noite, mas conseguia se lembrar do que aconteceu no banheiro. Como explicar pra alguém o que ele viu e ouviu naquele momento? E realmente qual seria o motivo pra ter caído no chão durante sua curta viagem para dentro de si mesmo?

- Então... Não sei como te explicar muito bem, aconteceram coisas muito estranhas hoje e eu sequer me lembro de algumas delas. - Disse por fim.

Só então Nath percebeu que Dylan não sabia o que tinha acontecido, percebeu a confusão em seu olhar, mais nítido que qualquer coisa no mundo.

- Bom, você podia pelo menos tentar me explicar as coisas de que se lembra, eu sou um menino muito inteligente, sabia? Tenho certeza que consigo entender você! - Falou o fantasma com um orgulho típico de crianças.

- Tudo bem - Respondeu o mais velho com um leve sorriso no rosto pelo jeito do garotinho - Eu me lembro de alguém me seguir na rua, me lembro de sentir muito medo e então depois eu estava na porta de casa e nada tinha acontecido comigo, o que me faz pensar que eu delirei no meio da rua. Depois eu entrei em casa e comecei a ficar ansioso e muito preocupado com tudo isso, então...

- Então?

- Eu não tenho certeza. Foi um vislumbre, um sonho, algo que veio de dentro de mim. E lá dentro eu vi... Não, eu ouvi... Alguma coisa respirando, como se fosse um monstro e...

- Que legal! Eu também quero ver o monstro Dylan, me leva? Eu prometo me comportar, me leva, me leva!

- Nossa, pirralho, só você mesmo pra ter uma reação dessas - Disse o mais velho cobrindo os olhos com a mão, como quem está incrédulo com algo.

- Fala sério, quem não ia querer ver um monstro assim de pertinho? Mas me conta uma coisa, Dylan, por que você estava na rua tão tarde da noite? Eu não entendi isso ainda.-

- Ah, eu tive um sonho muito incômodo e não consegui ficar parado, tive que andar um pouco.

- Você sonhou com o que? Era o monstro te perseguindo?

- Não, eu sonhei com você e fiquei preocupado... - Falou num tom baixinho, com um pouco de vergonha de admitir isso em voz alta ao fantasma.

- Que bobo você, ora essa, eu sou um fantasma, já morri, nada pode acontecer comigo.-

- Eu não sei, Nath, eu não tenho tanta certeza disso...

- Pois eu tenho, agora cale a boca e vá dormir, já tá tarde e...- Nath se interrompeu assim que ouviu o mais velho roncar baixinho - Deve ter ficado exausto, tadinho. Boa noite, Dylan e seja lá o que tenha aí dentro de você.

O Arauto do ColapsoOnde histórias criam vida. Descubra agora