O beijo da morte

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Ao contrário do que muitos pensam, e até mesmo do que eu pensava, morrer não é tão ruim. Não que exista uma luz no fim do túnel, ou que sua vida passe diante de seus olhos... É apenas o escuro, e a certeza de que se está sozinho. De certa forma, é um pouco reconfortante, afinal, o medo e a dor são passageiros e momentâneos, depois de algum tempo, você simplesmente aceita que tudo acabou. Foi assim comigo, e será assim para as demais almas, ou para quase todas. Existem exceções, são poucas, mas elas existem.

Antes que me pergunte se há céu, ou inferno, quero deixar claro que quase todos nós vamos para um mesmo lugar. Não importa se em vida, seus atos foram os mais bondosos existentes, ou, se tivera uma vida comum, com altos e baixos, bondade e maldade. No final, somos levados ao escuro. Não existe reencontro, muito menos anjos e trombetas celestiais, é apenas o nada.
Eu não sei ao certo se esse escuro é eterno. Para falar a verdade, não há formas de medir o tempo lá dentro, o vazio é o vazio, e não existe saída, ou marcação temporal. Porém, eu não sei lhe dizer se em algum momento, o vazio deixa de existir, e se as almas são encaminhadas a um lugar melhor, ou pior. Acabei por não chegar nessa parte, a morte tinha outros planos para mim.

Se você chegou até aqui, creio que esteja na hora de me apresentar. Meu nome é Melina, Melina Blackheart, e imagino que esta seja a única característica que ainda carrego comigo de minha antiga vida.
Nasci no dia 28 de setembro de 1874 em um pequeno vilarejo na Sérvia, e faleci, ou o mais próximo disso, em 14 de junho de 1892, neste mesmo vilarejo.
Acredito que o destino havia reservado surpresas para mim, enquanto ainda estava viva. Porém, elas jamais se completariam, graças ao homem que arrancou a vida de meu corpo.

Seu nome era Mattheo, um jovem rapaz, um pouco mais velho do que eu, portador de cabelos tão lisos e dourados quanto os próprios raios de sol, olhos, tão castanhos quanto a mais absoluta penumbra. E além disso, o rapaz mais amado e cobiçado do vilarejo.

Se lhe dissesse que jamais senti nada por este homem, ou que o odeio completamente, estaria mentindo. Meu coração, enquanto ainda vivo e palpitante, o pertencia de forma absoluta. Eu o amava, e acredito que este sentimento era puro, e por mais incrível que pareça, mútuo.
Porém, por mais belo e gentil que Mattheo pudesse ser, sua alma, era, e ainda é, a mais nebulosa e negativa com a qual já me deparei. Durante meus dias de vida, eu jamais pude ver ou perceber, mas hoje, vejo, e a sinto com clareza.

Fora durante o cair da noite do dia 14 de junho, que encontrei-me com o rapaz. Não havia contado a ninguém sobre nossos encontros noturnos em meio a clareira, afinal, sabia que minha querida mãe teria um pequeno surto, só de imaginar que sua jovem filha estava se encontrar com um rapaz mais velho, mesmo que este fosse o mais querido de todo vilarejo. Foi naquela noite que deitei-me ao lado do belo e sedutor rapaz, entregando lhe meu corpo e alma, de forma total e pura.

Meus sentimentos por Mattheo eram tão intensos e grandes, que me recusava, e sequer conseguia, lutar contra eles. Eu o amava, com todo o meu ser, e jamais pude imaginar que seria por suas mãos, que deixaria de viver.

Consigo me recordar exatamente das sensações que me rodeavam durante aquela noite. As últimas sensações humanas que pude sentir, e que agora, mantinham-se impregnadas em minha alma.
Ainda posso sentir o cheiro da terra úmida, e o perfume forte, mas confortável que tomava a pele do rapaz. Os arrepios que seus dedos grossos e um tanto ásperos causaram ao dedilhar minha pele ainda estavam totalmente presentes, assim como a maciez de seus lábios, tocando gentilmente os meus. E é claro, a dor gélida e continua da lâmina de sua adaga, atravessando meu peito, e se fincando em meio a meu coração.

A última imagem que meus olhos, ainda vivos, puderam ter o vislumbre, foi a do rosto harmônico do belo do rapaz, portando um sorriso torto e tão profundo, que eu poderia jurar que a escuridão que me possuiria segundos depois, fora emitida dali.
Como lhe disse, minha dor não demorou a passar. Porém, a sensação de que meu peito estava vazio, prevaleceu, e ainda permanece aqui, como um lembrete do dia em que desencarnei.

Fora então, que a morte me escolheu. Ainda não possuo o saber do porque minha alma fora salva, mas serei eternamente grata.

Não posso dizer que aceitei minha morte de bom grado, afinal, acreditava, e ainda acredito, que tinha muito a fazer em vida, como montar uma família e me casar em uma pequena igreja. Mas com o tempo, tudo se tornou mais fácil, e aceitável.
Gosto de dizer que a morte me caiu bem, tendo em vista que nunca me senti tão bem, e tão forte.
Ainda que agora minha pele fosse gélida e pálida, minhas imperfeições haviam deixado de existir. Meus cabelos, ainda que rebeldes, portavam o perfume de minhas flores favoritas, hortênsias. E meus lábios e bochechas, o rosar dos céus ao entardecer.

Em seu mundo, chamam seres como eu de ceifadores. Almas desencarnadas e escolhidas a dedo pela própria morte, ou como nós a chamamos, Thanatos.
O preço que paguei, e pago, para andar novamente em meio a terra, é o de servir ao ser encapuzado, ceifando almas em seu nome, e as entregando a seus domínios.

Caminhar em meio aos vivos fora estranho no início, mas ter a certeza de que Mattheo estava vivo e bem, era ainda pior, e preenchia meu coração morto e pútrido de sentimentos tão densos e confusos, que sequer conseguia me entender claramente. Ainda que tivesse a vontade de confronta-lo, e de rever minha querida mãe, eu não poderia quebrar a única regra imposta a mim: não se revelar aos mortais.
Portanto, isolei-me em uma cabana afastada, localizada em meio as terras mais frias e afastadas da floresta que antecedia o vilarejo, que um dia, fora minha morada. Os únicos momentos em que me expunha ao mundo mortal, era para cumprir meu papel como ceifadora, entregando almas a meu novo mestre.

No entanto, tudo mudou, quando puder descobrir que Mattheo vivia um novo romance, e agora, tinha uma nova vítima.

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⏰ Última atualização: Feb 27, 2021 ⏰

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