Escuro Preto

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Lá fora os portões estão se abrindo, é chegada a hora de me libertarem das correntes, anularem os cadeados, estes que até agora me aprisionaram a escuridão deste porão.

Os homens portadores das chaves aproximam-se a passos lentos, dá para sentir a intensidade de seus pés a passearem pelo corredor vindo ao encontro de mais um ponto preto.

À abertura dos cadeados, vejo-me não mais trancado em mim. Neste momento, ganho como conquista a oportunidade de recomeçar recuperando o que sobrou daquilo que sou.

Liberto, começo a andar pelas ruas em fim de tarde. O sol começara a ceder lugar para a lua, é apenas mais um dos seus desencontros.

Nos bares, pessoas encontram na bebida a fuga de si mesmo.

Pelos fragmentos dos bancos, outras tentam se convencer que irão dar um bom destino ao seu dinheiro conquistado. E a tudo aquilo que se conseguiu atribuir um preço é preciso pagar o seu valor. Aqui do lado de fora existe uma moeda corrente e eu vou relembrando que é necessário possuí-la para conseguir sobreviver de acordo com as determinações do sistema.

Após algum tempo as luzes nas residências começam a acender uma a uma e vão se mantendo acesas por um longo período. As portas e janelas permanecem fechadas. Todas elas possuem grades invisíveis. Aqueles que voltam para casa caminhando lutam internamente contra o medo de ficar com medo.

As estrelas no céu fazem agora companhia para a lua, em fase cheia elas só aumentam a graciosidade do seu encanto. É simples me deitar em qualquer banco, algo comumente desconfortável, olhar para o céu e desfrutar de tanta beleza a mim oferecida.

Durmo, agora com a liberdade que possuo. Quando acordo, vejo pessoas andarem indiferentemente lado a lado, apressadas, tentando diminuir a velocidade da progressão dos ponteiros do relógio. Poucas conseguem olhar para mim voltando rapidamente a atenção para o que há a sua frente.

E é preciso sempre andar pelo lado direito.

Chegada a hora do almoço para aqueles que possuem o que colocar sobre o prato, continuo andando pelas ruas, passo diante de lanchonetes e restaurantes. Vejo trabalhadores que vivem sem tempo para si próprios e encontram nesses lugares a solução para uma rápida refeição.

Percebo que preciso de um emprego, ir a busca de uma chance. No currículo possuo como entrada o orgulho de ser preto e como saída os dez anos que passei aprisionado no porão. Para lá eram enviados os negros que ousassem querer ter as mesmas oportunidades dos brancos.

Ousei um dia acreditar que o fim da escravidão extinguiria o preconceito, o racismo, mas ao ser encarcerado descobri que a minha esperança era só uma ilusão. A cor da pele é uma capa que pode ser utilizada para proteger ou destruir.

Aprendi que obediência é solicitada a todo instante, e é justamente dessa maneira que cada um vai barganhando a sua verdadeira identidade, visto que nada neste planeta parece ser gratuito e que não temos o direito de errar em nenhum momento sem que haja dedos sujos para apontar todo e qualquer erro cometido.

Durante longos anos eu me vi no escuro, até descobrir que é um pecado desistir apenas por acreditar ter chegado ao meu limite. Quase esqueci o universo de onde vim e abracei momentaneamente aquele em que estava. Me distanciando de quem sou e do que vim fazer aqui.

Mas se não existisse o mal, também não conheceríamos o bem.

Há sempre alguém lutando pela predominância da desigualdade, do preconceito. Tanto tempo se passou, mas tudo parece continuar como sempre, quase nada mudou, muitos estão nos mesmos lugares de 10 anos atrás, quase nada se criou, apenas se desenvolveu.

E tudo é uma mera questão de adaptação, comer algo ruim, pouco, mudar os hábitos, encontrar novas companhias, um lugar diferente, limitar-se a um determinado espaço ou reaprender a ter um universo todo pra si.

Eu escolho este universo, o horizonte me pertence assim como a todos aqueles que deseje alcançá-lo.

Com os meus pés posso chegar onde quiser, com a minha mente ganho milhares de quilômetros a mais.

E é incrível a contradição que existe no fato de estarmos sós o tempo todo, mesmo quando há alguém ao nosso lado. Da mesma forma que mesmo sozinhos sempre estamos acompanhados.

Sigo adiante, passo em frente a uma joalheria e não entendo como as pessoas creditam tanto valor a algo que parece tão insignificante quando assim é comparado o preço dessas joias ao sofrimento de tanta gente que não possui uma única bijuteria, nem ao menos uma moeda.

Pela primeira vez após uma longa caminhada sinto-me perdido, mas o mundo é cheio de sinais e eles nos ajudam a encontrar o caminho.

Olho para uma maternidade e logo percebo que a sua frente existe também uma funerária. São duas fases opostas da vida impossíveis de se ignorar.

O Nascimento quando ainda em nossa primeira casa, após autorização de sobrevivência temos a segurança de que necessitamos, no entanto ela só dura até o momento ao qual a vida nos suga para fora e revela o que foi criado para nós.

E na morte, quando a vida nos expulsa desta vida, mostra o que nos tornamos, o que construímos e até onde chegamos.

Fecho os meus olhos por um período e os abro quando ouço uma voz bem distante que diz: - É com você! Não me surpreendo, afinal, sempre foi comigo, apenas eu estive e continuarei comigo para sempre.

Já não me sinto mais um ponto preto. Quero fazer aquilo que penso não conseguir fazer, esquecer os meus limites e seguir em frente.

E assim, de tanto ver, pensar enxergar o real, observo que a minha volta, pelo mundo está sobrando ódio, terra, dinheiro, egoísmo, controle...

Na poltrona ao lado, posso também observar que está faltando amor, alegria, compreensão, humildade, amizade honestidade...

Busco inutilmente compreender a fé e o meu início de entendimento estaciona no primeiro momento em que tento acelerar. É preciso apenas crer, praticar, sentir.

Leio algumas palavras que fazem parte de um texto publicado em um jornal "O poder pertence a aqueles que possuem uma arma ou uma caneta nas mãos." Fico feliz por abrir a minha bolsa e enxergar uma caneta dentro dela, há papel também e agora escrever a minha história é só consequência, uma questão de tempo.

Enquanto houver quem escreva e alguém que leia, nossas percepções e experiências não passarão em vão.

Dando um passo de cada vez, concluo que apesar de tudo, não permiti que eles me transformassem em uma pessoa que não sou. Vou assim descobrindo o que fazer com aquilo que já possuo.

Olho para mim com uma únicacerteza, quero ter a possibilidade de ver e fazer o que seja correto, um dia,antes que a vida consiga expulsar-me dessa vida.

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