A vontade de gritar "Vai se foder!" foi mais que muita.
No entanto, permaneci de bico fechado. Deixei a garganta arder. Arder até àquele ponto de nem a saliva engolida conseguir suavizar. As palavras de protesto ficaram lá retidas. O grito entalado.
Fiquei melindrada, profundamente magoada mas tentei relevar. Dar tolerância. Simão estava transtornado. O ânimo todo exaltado. Me forcei a pensar que falou no calor do momento. Uma explosão. Sem pensar. Sem intenção de ferir.
Eu só tinha de desculpar. Para quê piorar as coisas?
A dimensão do drama que a família dele estava vivendo era difícil de imaginar. Incomensurável. Era uma daquelas coisas que a gente pensa que só acontece nas histórias de romance ou nos filmes. Todos estavam brutalmente abalados. Desorientados. Feridos.
Eu também. Agora ainda mais.
Pisquei os olhos. As pálpebras pesaram. Não de sono. Foi mágoa. Foi desilusão. Ressentimento. Tristeza profunda.
O que verdadeiramente me doeu não foram as palavras ofensivas. Não foi o tom agressivo. Elas sempre surgiam no calor da discussão. Em nossas brigas, os dois nunca nos preocupámos com as palavras ditas, com o ferir a sensibilidade e sentimentos do outro.
No fundo, ambos sabíamos que eram palavras sem significado. Faladas sem serem sentidas. Apenas rosnadas e logo esquecidas. Esquecidas tanto por quem as proferia como por quem as escutava. Eu estava acostumada que Simão fosse um bruto insensível. Eu não era melhor. Até hoje, as únicas palavras dele que me magoaram a sério foram as que insinuaram que eu não era uma boa mãe.
Desta vez foi diferente. Em meu íntimo soube que as palavras dele foram sentidas. Soaram a um grande "chega pra lá", porque eu não fazia parte do clã familiar dele e não tinha direito de expressar minha opinião diferente. Isso me magoou. Me fez sentir a mais, sem valor. Excluída, sem importância. Uma intrusa no clã.
Mal chegámos em casa fui ter com Mariana. Quase nem vi minha filhotinha na última semana por causa de todo o rebuliço provocado pelo desaparecimento de Diana.
Deitei-me junto dela, com cuidado para não a acordar. Fiquei uma infinidade de tempo contemplando ela, admirando no escuro o seu rostinho lindo, a sua expressão serena e inocente. Buscando conforto no seu cheirinho, respirando paz na sua serenidade. A serenidade da inocência intocada pelo infortúnio e pela maldade.
Como seria bom se conseguisse protegê-la de tudo neste mundo. Tarefa árdua, sorri para mim mesma. A vida era tudo menos paraíso. Mais cedo ou mais tarde alguma coisa, alguma pessoa iria destruir a inocência da minha filha. Trazer-lhe sofrimento e tristeza. Desilusão e raiva.
A mim só me restava amá-la e protegê-la dos perigos. Ensiná-la a enfrentar as contrariedades, ultrapassar os obstáculos. Incentivá-la a não ter medo de conquistar os desafios. Desejar do fundo do meu coração que as alegrias fossem maiores que as tristezas na sua vida. E que ela pudesse ser fonte e luz de alegria para os outros também. Tanto quanto era para mim.
Diana veio em meu pensamento. Será que ela tinha consciência de todo o sofrimento que estava causando? Senti pena de David. Se ela não aparecesse, ele nunca iria conhecer o filho ou a filha por nascer. Eu continuava pensando que ele também tinha culpa do que estava acontecendo. O que ele fez com ela foi errado. Eu não culpava Diana por acreditar na acusação da amiga. Ela tinha motivos para acreditar. David estava pagando os seus próprios erros. Infelizmente, o preço que ele estava pagando era demasiado injusto. Era uma loucura.
E a outra moça? Porra! Ela me pareceu tão legal. Tão gente boa. Como era possível inventar uma mentira tão vil? Que motivos teria?
Lembrei de Gil. Toda a mentira suja que ele engendrou para me separar de Simão, apenas porque tinha esperança de me conquistar. Simão também. Toda a sua chantagem de mentira para eu desistir do divórcio. Os fins justificando os meios. Nenhum dos dois olhando aos meios para atingirem os seus fins. Nenhum dos dois se importando se tornavam minha vida num inferno.
A porta comunicante com o quarto da babá abriu-se suavemente. A luz do outro quarto penetrou até à cama de Mariana. A silhueta da babá surgiu recortada na luz. Encaminhou-se silenciosa até nós.
- Ai que susto!
Deu um pulo sobressaltada quando me viu, com as mãos no peito. Depois sorriu, já refeita do susto, e falou baixinho.
- Não esperava encontrar ninguém aqui. - se justificou - Vim ver se está tudo bem com Mariana, antes de me deitar.
- Desculpa se tomou susto. - sorri, agradecida com o seu cuidado.
Tinha de esquecer os meus ciúmes infundados. Deixar de ser tão seca e antipática com Sílvia. Ela era uma babá carinhosa e bastante zelosa, sempre atenta e cuidadosa. Mariana estava em boas mãos.
- Pode ir dormir descansada. - tranquilizei-a, falando também eu em voz baixinha - Ela está dormindo como um anjinho.
- Agora se parece como um anjinho. - deu uma mirada enternecida em Mariana e depois soltou uma risadinha - Mas se portou como uma diabinha até adormecer.
Diabinha ... Esbocei um sorriso tênue. Simão sempre me chamava de diabinha quando estávamos sozinhos. Eu adorava aquele apelido, a forma como a palavra soava na sua voz rouca e grave. Até senti um arrepio no estômago.
- Mariana sentiu sua falta. Fez birrinha porque queria esperar pela mamãe.
Me senti culpada. Ao mesmo tempo feliz por constatar que minha ausência era notada, minha presença desejada. Tinha de compensar os últimos dias. Dar a minha filhotinha muito mimo e atenção.
- O dia hoje foi muito excitante. - a babá parecia querer continuar conversando comigo - Nasceu o irmãozinho de um dos coleguinhas da creche. Mariana ficou muito excitada.
Calculei que falasse de Marina, a jovem advogada da Paradisum. Que bom, finalmente uma boa notícia. Pensei em dar uma visita na maternidade. Sorri distraída, lembrando da última vez que vi Marina. Os ciúmes todos. As suspeitas todas. A noite nos braços de Simão ... As outras noites que se seguiram.
- Bom ... se não sou precisa, vou dormir. - Sílvia interrompeu meu devaneio.
- Tchau ... Bons sonhos. - desejei.
- Obrigada. - agradeceu-me sorridente - Pra você também.
Se afastou devagarinho. Observei-a desaparecer no outro quarto. Com os cabelos soltos e sem o uniforme, vestida com aquela camisola curtinha, Sílvia parecia mais jovem. Mais bonita também.
Também me levantei e fui deitar.
Simão não estava na nossa suíte. Tomei uma ducha e me deitei. Melhor assim. Eu continuava ressentida com ele. Sem vontade de o encarar sob a luz. Sem vontade de conversar. Desejava apenas sentir o seu toque na obscuridade da noite. Falar naquela nossa linguagem de corpos que sempre nos unia, dispensando palavras escorregadias e perigosas. Hoje eu só queria me refugiar nesse encontro de corpos e esquecer tudo em seus braços.
Quando Simão finalmente entrou no quarto, eu quase dormitava. Senti-o ir no banheiro. Ouvi o som do chuveiro. Depois, seus passos quase silenciosos aproximando-se da cama.
Aguardei pelo toque quente da sua mão em meu quadril, o roçar de lábios arrepiando a minha pele, o encostar de seu membro rijo, me comunicando com seu corpo másculo o quanto ele me desejava. Aguardei que se aproximasse de mim, como ele sempre fazia depois duma briga.
Não se aproximou. Ficou deitado na outra extremidade da cama gigantesca.
Senti um frio interior se alastrar, gélido. Um nó de angústia intensa se formar na boca do estômago. Insuportável. Foi pior que as palavras brutas dele. Simão não estava a fim de mim. Nem de me comer nem de se reconciliar comigo.
Fechei os olhos, estremecida com a sua distância. Desassossegada. Um desconforto sem igual. Tentei conciliar o sono mas a insônia me venceu, acometida por um sentimento de medo e inquietação. Sem me mexer da minha posição, virei de leve a cabeça para o espiar.
Estava virado de costas para mim. As costas tensas, numa postura rígida. Acabrunhada, com o coração apertado, voltei a pousar minha face no travesseiro. Fiquei entorpecida, meio que anestesiada, sem conseguir pensar direito. Sentindo, no mais fundo do meu íntimo que algo em nossa relação estava irremediavelmente desfeita.
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Quer pagar pra ver? Volume II
Literatura FemininaPara Inês, descobrir que Simão sempre a amou é um sonho tornado realidade. Para Simão, descobrir quem anda assediando Inês com as mensagens anônimas torna-se a grande prioridade. A verdade é desvendada e eles finalmente podem viver em paz. Mas nem t...