Grande Irmão

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Estava escuro. A água quente que tocou os músculos do corpo não os fizeram relaxar. Trêmula, sentindo o ar doer a cada inspirada, os olhos encaravam a única luz naquele banheiro. O pequeno drone estaria invisível com sua capacidade de refletir luz, mas o LED aceso, para que conseguisse filmar na penumbra, denunciava sua presença. E, pela primeira vez na vida, não se sentiu protegida diante a câmera.


— Houve um tempo em que as coisas eram diferentes, minha filha — disse a senhora que observava o mundo pela enorme tela. Em frente, assistiam aos vizinhos comemorando o aniversário de um ano da filha. — Bem diferentes. — Encarou a neta ao lado, que estava focada nas imagens. — Não podíamos ver a vida um dos outros assim. Não havia câmeras em todos os lugares. Não havia o Grande Irmão... — A última frase saiu num sussurro que a neta não ouviu.

— Deveria ser chato! — Bufou a menina. — Olha isso! — Riu ao ver a criancinha de um ano afundar ambas as mãos no bolo de chocolate. Enquanto isso, a irmã mais velha do rapazinho continuava a encher a barra do vestido com brigadeiro. — O que você ia fazer quando tivesse entediada?

— Muitas coisas! — A mulher riu, mas não da cena na tela. — Conversávamos com nossos amigos. — A neta fez careta. — Era fácil fazer amigos naquele tempo. Nos conhecíamos na escola.

— Tipo a minha escola? — Virou-se para a avó.

— Ah, não! Era diferente! Não ficávamos o dia todo na frente da tela! Íamos à escola. A escola era um lugar real, onde aprendíamos coisas e fazíamos amigos.

— Perda de tempo! — Deu de ombros, voltando para a tela. — Quer ver o que os Santos estão fazendo agora?

— Não, querida. — Suspirou. — Não vejo graça em assistir a vida alheia. — Virou-se para os lados, buscando os drones que cercavam a casa. Durante o dia, com as fortes luzes que vinham do mundo de fora, era difícil encontrá-los.

— A senhora não vê graça em nada! — Bufou. — Mostrar Matheu, por favor. — No mesmo instante a tela mudou. Da família comemorando aniversário passou para o garotinho no quarto. Com um pedaço de pau na mão, ele lutava contra o ar. — Matheu vai acabar se machucando.

— Deixe ele brincar! — Sorriu ao ver o netinho, tão enérgico. Lembrava-a muito das crianças da própria época, diferente das atuais que sempre estavam em frente as telas. — Meu pequeno Dom Quixote.

— Quem?

— Dom Quixote, querida. — Virou-se para a neta. — Era uma história de um rapaz que lutava com moinhos de ventos.

— Que doido! — Riu. — Será que tem gravado as cenas dele?

— A história é de um livro, não de uma das casas, Onnika!

— Ah! — Dando de ombros, resolveu se levantar do sofá. — Vou mandar Matheu parar quieto. Vai acabar acertando um drone com aquele troço! — E seguiu para o quarto, sem porta, onde o garotinho gritava.


Quando as primeiras lágrimas escorreram, não lavaram o sangue coagulado do rosto. Misturando-se a água quente do chuveiro, era quase como se não estivesse chorando. Talvez não devesse chorar. Não quando as pessoas do outro lado estavam à assistindo coberta de roupas, sob a água quente, sangrando e sozinha. As pessoas do outro lado não se importavam. E foi quando decidiu quebrar a primeira regra.

Fungou, os olhos fixos na pequena LED acesa, antes de tirar a camisa. A luz piscou por alguns segundos, mas logo se estabilizou no verde neon novamente. Sabia que deveria ter alguém do outro lado olhando para o seu corpo. Sempre tinha. Despida, expunha os seios em desenvolvimento, a barriga levemente avantajada, as marcas roxas de quando se chocou com os móveis. E, do outro lado, ninguém parecia reagir. Porque, no fundo, estava sozinha.

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