A Revolta de Adão e Eva

EVA | Capítulo 1 - Padre Cícero

20 de Maio de 2080, 12h30 – Vaticano

- É só isso que me lembro, Papa Francesco.

- Por favor, só Francesco, essas formalidades me incomodam. Tente se lembrar de mais alguma coisa, Cícero. Isso é algo sério. A igreja vem passando por um grande colapso. O número de fiéis tem caído senso após senso. Você pode ter a resposta pra resolvermos a situação.

- Já faz quase vinte anos que ela foi se confessar comigo. A voz era familiar, mas não tenho certeza se ela fazia parte do corpo da igreja... - parando pra tomar um gole da infusão de cidreira que está no pires, na mesa de centro -, pode ser a irmã Dulce, ou a irmã Joana. Já tem muito tempo, irmão.

- Tudo bem. Vamos trabalhar com o que você já nos passou. Você deve estar cansado, é melhor ir para seu aposento. Consigo ouvir sua respiração daqui. Já não é mais um menino, padre.

Em tom carismático Papa Francesco levanta-se e abre a porta da Sala Papal para que o Padre Cícero saísse. A Sala Papal é um lugar onde reuniões são feitas somente com os clérigos do alto escalão da igreja, mas que excepcionalmente hoje um simples padre ocupava uma de suas cadeiras. Foi construída sob a Praça de São Pedro na década de 2030 para proteger o então Papa Getúlio das revoltas populistas contra a Igreja. Sob o chão do Vaticano e diversos outros pontos de Roma, há diversos túneis que levam a pontos estratégicos. Muitos acreditam haver nesse labirinto, além de passagens secretas para a segurança do Papa, uma prisão para os que se rebelam contra o pontificado.

Papa Francesco é o papa mais novo da história recente, no auge de seus 45 anos.

O bispo Joaquim é designado para cuidar do padre Cícero, já idoso, mas que ainda resiste em se manter no cargo. O destino seguido pelos túneis será em direção ao Palácio Apostólico. Enquanto conversam, são guiados e protegidos por quatro homens de faces cobertas, conhecidos como a Marcha Subterrânea. Além dos rostos encobertos, também utilizam sobretudos pretos contendo nas costas a inscrição “Ad Verum Ducit”, algo como “conduzir à verdade”. Dois deles permanecem sempre a frente do grupo guiado e os outros dois andam atrás. 

- Padre Cícero, o senhor já está bem velho pra essas longas viagens, oras. Não parou de suar durante nossa caminhada.

Descontraído, antes de entrar no carro o padre lhe responde:

- Eu era pra estar no lugar do Papa Francesco. Sabia disso? Não lhe passa pela cabeça que algo muito grande ainda me mantém numa pequena capela no centro de São Paulo? - Esboçando um sorriso, Padre Cícero continua - Mas e você, como vai Maria? Já sente saudade de Lisboa?

Joaquim lhe conta como foi difícil partir de Portugal com sua irmã mais nova para continuar seus serviços na igreja. "Era uma oportunidade única para mim, ela acabou aceitando mais rápido do que eu imaginava", dizia ele. Foi o tempo até que chegassem no hotel. Já estava tudo ajeitado, Joaquim somente precisou levar o padre até seu quarto.

- Cá estamos, Padre Cícero. Um dos melhores aposentos! Parece que o Papa gosta mesmo do senhor. Aqui temos esse telefone. Na escrivaninha há uma lista com todos os ramais importantes. Fique com esse alarme, estarei a sua disposição, Padre, basta apertar que serei notificado. O chuveiro fica ali, e na cozinha temos comidas rápidas, caso queira lanchar. Seguranças fazem ronda pelos corredores. Está seguro aqui. E qualquer coisa chame algum enfermeiro, estou preocupado com essa sudorese do senhor.

Um longo abraço marca a despedida dos dois. 

Joaquim vai embora inquieto com a notícia que recebera do Padre Cícero. “Como ele pôde negar ser Papa?”. Sabia que era preciso conversarem mais, a experiência a ser adquirida era enorme. E com isso em mente já planejara voltar à noite para jantar com o Padre.

Padre Cícero toma um banho e tira um cochilo. Está com uma dor de cabeça terrível. Acaba dormindo por umas três horas,  até ser interrompido pelo toque do telefone.

- Boa noite, padre.

- Boa noite, quem está falando?

- Isso não é tão importante. Não agora. Só queria lhe parabenizar por ter chegado tão longe com tão poucas pistas. Mesmo depois de vinte anos ainda se lembra dela... Joana, minha mãe.

- Então é você...

- Enfim, espero que tenha aproveitado a estadia na Itália. É um lugar bonito para ver ou morrer. Aliás, fiquei com um pouco de receio de você morrer antes de receber minha ligação,  você é forte. Parabéns novamente. Boa noite. Antes que eu me esqueça, o chá é especialidade minha.

Padre Cícero só tem tempo de pedir um último perdão a Deus.