O tratado

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Eu tive medo quando as máquinas chegaram. Todos os filmes diziam que seria culpa nossa, algum algoritmo fora de controle tomando sistemas militares e destruindo o mundo. Mas estas não vieram destruir o mundo. Não o mundo de verdade, pelo menos. Eram cópias estranhamente estilizadas de insetos gigantes que de repente invadiram os prédios e mansões, arrancando os poderosos de seus covis e os matando. O apocalipse foi declarado pela grande colmeia que sobrevoava o oceano atlântico. Tentaram atingi-las com todos os tipos de armas, mas elas estavam preparadas. Demorou alguns meses para a população perceber o que estava acontecendo. Apesar de compreender tudo, agora o medo se foi para dar espaço a uma desolação existencial.

Estas máquinas vieram até a nossa terra com um objetivo muito claro e bem pensado. Elas vieram até aqui com um problema ético e, segundo elas, só cabia a nós tomar uma decisão que tivesse profundidade e legitimidade. Uma decisão unânime de todo o planeta. Porém, elas explicaram sinceramente que este mundo em que vivíamos, onde tivemos todas as nossas dores e amores, era somente uma simulação. No maior estilo Pensador Profundo, esta Terra era somente a criação de uma máquina para emular a decisão de um problema complexo. Também construtos desta simulação, elas e a sua nave colmeia vieram até este mundo em busca de instaurar o que elas chamaram de "uma verdadeira democracia". Destruindo todas as relações de poder que existiam entre os seres humanos e acabando com a escassez. Após destronar e expropriar todos os lordes e donos de terra, as máquinas faziam toda a produção necessária para a sobrevivência dos humanos e atendiam a todas as suas necessidades. Segundo elas, somente sem senhores e com direito a livre-pensamento garantido, as pessoas deste mundo simulado chegariam a uma resposta verdadeiramente satisfatória para o problema apresentado.

Há dez anos eu vivo neste mundo, e ainda não estamos prontos para tomar uma decisão. Houve progresso, entretanto. Os povos do mundo criaram pequenas versões do que antes chamávamos países. Porém, as identificações eram estritamente culturais e haviam fortes movimentos de intercâmbio cultural entre as diferentes regiões. Cada uma das universidades destes novos países criou um núcleo de estudos para a resolução do problema onde todo e qualquer cidadão poderia se voluntariar para participar. Haviam constantes votos com ampla participação popular, mas nunca unânimes. As máquinas disseram que poderíamos levar todo o tempo necessário, afinal, esta precisava ser uma decisão do mundo inteiro.

Muitas pessoas viam certa glória no trabalho que estava sendo feito para responder à pergunta. Muitos interpretaram a vinda das máquinas religiosamente e não acreditam que estamos realmente em uma simulação. Outros acreditam que é simplesmente impossível chegar a uma decisão unânime. Mas há os que, como eu, estão levando a sério a discussão. Tentando encontrar uma linha de pensamento verdadeira. Uma que possa ser demonstrada para o mundo inteiro. Assim, tomaremos uma decisão unânime, completando enfim nosso objetivo existencial e apagando a necessidade de existência do nosso mundo. E ele próprio. As máquinas tinham deixado isso claro. Assim que a pergunta for respondida unanimemente, este mundo deixará de existir. Afinal, como fazer um experimento ético de verdade caso se minta sobre suas consequências?

Eu então vim à praia, no que um dia foi o Norte do Brasil. Minha máquina pessoal poderia ter me trazido, mas eu decidi vir de bicicleta. Não há trânsito de verdade desde a invasão, os insetos têm uma consciência de colmeia, única, que os faz saber exatamente onde os outros estão e tomar rotas extremamente eficientes. Além do quê, eles tomam um cuidado exagerado com a sobrevivência dos humanos. E não é à toa que o trânsito teve de deixar de existir: foi pela própria natureza da nossa prisão.

Eu fumo, e minha máquina diz que eu provavelmente não vou morrer antes do experimento acabar e este universo deixar de existir. Afinal, somos só um dos milhões de simulacros sendo processados ao mesmo tempo. Cada um com variáveis diferentes. Talvez em algum deles nem exista uma invasão das máquinas e eles nem saibam qual o problema é, como no Guia do Mochileiro das Galáxias.

As ondas fracas vêm borrar a linha que separa a areia da água. Separar a linha turva que a minha mente já não consegue ver. As máquinas, que trouxeram tanta felicidade à minha existência como humano. Que me deram a oportunidade de voltar pra casa e ver minha família. Que me deram o conforto e a oportunidade de ter uma filha. São as mesmas máquinas que puxaram o véu da realidade e me mostraram o quão pouco eu significo. A grandiosidade da campanha por uma decisão humanamente unânime e genuinamente universal sendo corroída pela sua própria artificialidade. Afinal, quanto vale uma vida? Como você escolheria entre uma vida e outra se fosse obrigado? Quais critérios utilizaria? É possível valorar essa decisão tendo em vista somente o tempo que estas vidas duraram? A questão é justamente essa. Grandiosa, não? Se você fosse obrigado a dizer quem vale mais baseado unicamente na idade de alguém, você poderia fazê-lo? E caso você esteja em um carro, pronto para atropelar uma destas pessoas? E se for um caso extremo? Uma velha e uma criança. Quem você atropela?

Em nenhum momento as máquinas mentiram. Nós estávamos simplesmente sendo simulados por um carro inteligente para tomar uma decisão de trânsito. E eu nunca vou saber se ele atropelou a senhora ou a criança, pois quando ele estiver pronto para tomar esta decisão, eu e meu universo já teremos deixado de existir. Minha filha não vai crescer. Todos os meus planos serão de curto-prazo... E aqui estou eu na praia lendo novamente o Guia do Mochileiro das Galáxias, não exatamente procurando uma resposta para a grande pergunta que neste mundo é esfregada na minha cara. Eu estava lendo a introdução, escrita por Bradley Trevor Greive. De novo e de novo. Nesta edição, Douglas já havia morrido, e há uma introdução especial onde uma frase específica me chamou muito a atenção: "Uma posição radicalmente ateísta pode até significar que a sua vida é uma corrida rumo ao esquecimento — mas ao menos você pode fazer isso com estilo." 

...

Deu mais um trago no cigarro e observou o horizonte.

"Por que abelhas?"

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