SAHWN

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Passava minhas mãos na calça tentando secá-las quase de inutilmente. Eu seria o próximo a entrar naquela sala cheia de aparelhos oftalmológicos e, finalmente, descobrir se ainda existem possibilidades de cura.

– Amor?! - Camila sussurrou. – Relaxa, vai dar tudo certo. - ela passava as mas em meus braços como forma de acalento.

Talvez nãotão certo assim...

É incrível a forma como nosso cérebro é traiçoeiro. Eu não quero pensar na possibilidade pessimista de eu não poder voltar a enxergar e esse é o único pensamento que eu não consigo evitar. Mesmo assim, mais uma vez, tento manter o pessimismo longe e trazer o otimismo para perto.

Sorri da forma mais verdadeira que consegui.

– Eu sei que vai. Só estou ansioso. - ela fingiu que cria em mim e eu fingi que não sabia que ela tinha a capacidade de me ler perfeitamente. Sem deixar passar nada.

Pra ela era mais fácil que pra mim. Não que eu não a lesse. Muito pelo contrário. Ler Camila é quase que inevitável para mim. Aprendi a ler até mesmo o silêncio dela. Me pergunto se isso vai mudar quando eu, finalmente, puder a enxergar. Creio que não.

Sai de meus devaneios com ela se pondo de pé ao meu lado. Respirei fundo, agarrei seu braço esquerdo com o meu direito e deixei que ela me conduzisse até a sala do médico.

– Boa tarde. Como vai? - a voz do homem era grave porém suave. Ele, de fato, parecia seguro de si. – Sentem-se, por favor.

Camila arrastou a cadeira para que eu soubesse onde ela estava e sentou-se na cadeira que estavas ao lado da minha. Cumprimentamos ele.

– Pois bem, Shawn. Em que posso te ajudar? É a sua primeira vez aqui, não?! - suspirei antes de começar.

– Eu fiquei cego e gostaria de saber que há a possibilidade, mesmo que mínima, de eu recuperar minha visão. - fui direto ao assunto sem nem ao menos dar tempo de meu raciocínio acusar que o termo "fiquei cego" já indica que não há maneira de reverter meu quadro. Relaxei quando me lembrei que ele é um especialista e sabe que, se eu estou aqui, é porque já me disseram que há a possibilidade.

– Pois bem, vamos do início. Você ficou. - ele frisou a palavra - Ou seja, há uma história por trás. Preciso que me conte tudo o que se lembra. - ouvi o clik da sua caneta indicando que ele estava pronto para anotar tudo que pudesse me ajudar e iniciei minha história.

– Eu tinha por volta dos meus nove, dez anos. Eu comecei a sentir dores de cabeça frequentes e minha visão foi se escurecendo.

– Você não foi levado a nenhum especialista nesse meio tempo?

– Não. Minha mãe tinha engravidado outra vez e todo mundo dizia que essa era minha maneira de chamar a atenção dos meus pais. Eu perdia muitas aulas por conta da dor de cabeça e me lembro de sentir medo de contar sobre a minha visão ficar turva. - o barulho da ponta da caneta se arrastando pelo papel era quase que um ruído constante. Ele parecia anotar absolutamente tudo o que eu dizia, sem deixar nada para trás.

– Você sentia apenas dor de cabeça, nenhuma outra dor?

– Meu olho também doía, sentia como se o estivessem pressionando. - mais uma vez ele anotou.

– Você sabe me dizer quanto tempo isso durou?

– Não exatamente, mas menos de nove meses. Quando minha irmã nasceu eu já não podia mais ver. - Camila suspirou ao meu lado.

– E como foi quando a visão se foi de vez?

– Me lembro de acordar, ir ao banheiro para lavar o rosto e ver tudo ficando cada vez mais escuro até sobrar apenas um ponto branco.

– E esse ponto branco continua presente?

– Sim, muda de intensidade. É assim que eu sei quando está claro ou escuro.

– Em algum momento foi encaminhado a um especialista?

– Quando eu fiquei realmente cego. Minha mãe me levou a um oftalmologista. Ele disse algo sobre um transplante mas meus pais tiveram medo de prosseguir.

– E tudo o que você vê é esse ponto branco, certo?!

– Bom, hoje em dia eu não enxergo mais cores. Por muito tempo eu as via nos sonhos mas, de repente, tudo começou a perder a cor e tudo o que eu sonho agora é em preto e branco ou baseados nos outros sentidos.

– Shawn, vamos fazer um mapeamento da sua retina. Quero checar se ainda há a mínima atividade.

– E tem como fazer isso agora? - Camila falou, pela primeira vez, desde que cumprimentamos o médico.

– Tem sim, é um exame rápido. Se vocês quiserem posso fazer agora mesmo.

– Então pode fazer. - ela continuou.

Ouvi o barulho de cadeira se arrastando. O doutor estava se levantando. Ele abriu o que eu julgo ser uma gaveta pelo barulho leve e aveludado.

Julgamento, isso é uma coisa que os deficientes visuais aprendem a fazer com maestria. Bom, talvez não todos. Mas eu sim.

É fácil saber se estão abrindo uma porta ou uma gaveta se estou na minha própria casa onde sei exatamente em que local se localiza casa coisa mas, em um lugar estranho, fora do habitual, tudo o que eu posso fazer é perguntar ou julgar. Julgar parece mais fácil, geralmente.

– Shawn, vou pingar um colírio nos seus olhos e pode ser que arda um pouco. Depois vou analisar com um oftalmoscópio indireto.

– Tudo bem. - me ajeitei na cadeira à espera do líquido que logo foi pingado em meus olhos. Tive vontade de fecha-los mas não tinha certeza se o podia.

– Vamos conversar mais um pouco. - murmurei um ruído em concordância. – O que te fez me buscar agora? Digo, você passou muito tempo sabendo que podia recuperar a visão, o que te fez querer tê-la de volta apenas agora?

Eu não sei ao certo o porquê ele estava entrando nessa parte tão pessoal da minha vida mas eu não tinha nada para fazer naquele momento e os meus motivos não eram segredo para ninguém. Nem mesmo para meu médico.

– Bom, ela foi um deles. - apontei em direção à Camila. – No fundo eu sempre quis voltar a ver o mundo através dos olhos mas sempre tive muito medo. Minha irmãzinha sempre quis que eu voltasse a ver para poder vê-la e nunca conseguiu, de fato, me convencer mas... Camila não desistiu. Ela chegou a procurar médicos mas eu me recusei a ir a todos eles.

– E foi ela quem me achou?

– Não. - apertei sua mão. – Eu quis fazer uma surpresa. Meses antes de nós nos casarmos pedi a um amigo me ajudar a encontrar quem não fugisse da minha cauda e achamos você.

– Muito bem. O processo não é fácil e também não posso te dar cem por cento de chances de recuperação. Eu te indico que inicie acompanhamento psicológico. Com um psicólogo. Ele vai te ajudar a lidar com uma possível frustração. Até porque, infelizmente, nada nessa vida é cem por cento certo.

Paixão às Cegas.Onde histórias criam vida. Descubra agora