O FATO FALSO: DO FACTÓIDE ÀS FAKE NEWS
Resumo: O fenômeno das fake news, geralmente entendido como apenas "notíciafalsa", ultrapassa o nível técnico da credibilidade jornalística. O fenômeno pertence ao quadro problemático da desinformação, tópico militar constante em guerras psicológicas, agoraexacerbado pela comunicação eletrônica. É importante a confiança pública na veracidadedos fatos para a sustentação da democracia representativa. O jornalismo destaca-se comotipo particular do conhecimento de fato. Distorção, factóide e boato como figuras antitéticasà veracidade factual. As fake news como boato na rede.
Palavras-chave: fake news; credibilidade; desinformação; conhecimento de fato; boatoeletrônico
Desde a ascensão de Donald Trump ao poder nos Estados Unidos da América, a questão das "notícias falsas" (fake news) extrapolou o nível técnico dacredibilidade jornalística para recair, como tática de construção e desconstrução de imagens eleitorais, na dimensão política das ameaças internas e externas à democracia. A eleição de Trump foi institucionalmente colocada sobsuspeita e sujeita a investigação legal por motivos que envolvem a disseminação de informação falsa e a interferência eletrônica de potência estrangeira.
Por outro lado, o referendo que levou o Reino Unido a sair da União Européia (oBrexit), ingressando numa longa crise política, foi sabidamente orquestradopor mentiras de xenófobos e ativistas de direita
Na verdade, o tópico da desinformação por meio do fato falso ou mentiroso – estudado e praticado por agências governamentais nos períodos deconflito militar – é antigo. Exacerba-se nos dias de hoje por sua incorporaçãono funcionamento social da rede eletrônica, cujos usuários, principalmente osmais jovens, são cada vez menos propensos a distinguir o discurso informativo do discurso "mercadológico", permeado por um amplo e vago imagináriosocial. Mas não apenas por esta razão de ordem técnica: a impulsão motorado fenômeno decorre principalmente da crescente indiferença generalizadaà realidade dos fatos, em favor de um acentuado desregramento dos afetos.
Dentro da sociabilidade democrática ou de qualquer sistema positivo devalores, o conhecimento da realidade de um fato sempre foi tido como imprescindível ao autogoverno da cidadania. A veracidade do acontecimento supostamente testemunhado (noção inscrita no grego Histor) e tornado públicopor um mediador globalmente autorizado (o jornalista) é uma questão crucialpara a concepção de História como esclarecimento, subjacente ao liberalismodemocrático. Assim é que em The Post (2017), filme de Steven Spielberg, umapersonagem (mais precisamente, a proprietária do notório Washington Post)define notícia como "um rascunho da História".
Sempre pairaram suspeitas sobre o alcance do esclarecimento desse "rascunho" publicista. Ainda no século XIX, o notável Honoré de Balzac vituperava: "O jornal já não é feito para esclarecer, mas para bajular opiniões. Porisso, dentro de algum tempo, todos os jornais serão covardes, hipócritas, infames, mentirosos, assassinos; vão matar ideias, filosofias, homens, e por issomesmo vão prosperar" (2007).
Balzac localizava o núcleo da crise precisamente na identificação de "publicismo" com jornalismo: "Publicista, este nome outrora atribuído aos grandesescritores –– como Grotius, Puffendorf, Bodin, Montesquieu, Blakstone, Bentham, Mably, Savary, Smith, Rousseau ––, tornou-se o de todos os escrevinhadores que fazem política. De generalizador sublime, de profeta, de pastordas idéias que era outrora, o publicista é agora um homem ocupado com oscompassos flutuantes da Atualidade. Se alguma espinha aparece na superfície do corpo político, o publicista o coça, o desdobra, o faz sangrar e tira deleum livro que, quase sempre, é uma mistificação. O publicismo era um grandeespelho concêntrico: os publicistas de hoje o quebraram e têm todos umpedaço que eles fazem brilhar aos olhos da multidão" (Balzac, 1999, p. 31).