Strymon titus, a Borboleta de Fogo

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Dois de todos esses anos eu não sei mais o que é o tempo.

Tudo é diferente, as coisas acontecem rápido demais. Não sei pra onde olhar ou que caminho tomar, por isso permaneço parado.

Andando a esmo pelas ruas tudo o que está em movimento se torna borrões para os meus olhos. Não reconheço rostos, não reconheço coisas, não reconheço nada. É co-mum em certo momento encostar-se a uma parede e esperar, olhar, tentar entender o que se passa. Não é uma tarefa fácil.

E as coisas permanecem avançando desfocadas ao meu redor. Carros, motos, bici-cletas, ônibus; mais carros, mais bicicletas e mais de tudo correndo pelas ruas numa velocidade que é impossível de acompanhar. Pessoas vão e vem, passam por mim e me ignoram, ou me olham e eu não consigo ver. Talvez eu não exista; talvez eu seja invisível. Pode ser até que nada exista; nem eu, nem as pessoas que passam por mim.

Certa vez andando por um campo de centeio que o vento agitava com insistência e tão rápido que me deixava zonzo, encontrei em um solitário girassol onde uma Strymon titus o colocara, um ovo vermelho com desenhos microscópicos característicos. Era apenas um solitário ovo de borboleta em um solitário girassol em um campo de centeio. Não pude ver a beleza da borboleta mãe, já que na velocidade em que tudo estava ela desapareceu em um mero segundo deixando seu ovo solitário em um girassol solitário.

Seria eu como aquele ovo de Strymon titus, deixado para crescer sozinho e me tornar por conta própria um ser gracioso e bonito que pode voar pra onde quiser? Algum dia eu tive a resposta sei que tive.

Passou-se a primavera e o verão até que o ovo eclodisse. Nesse tempo não ousei tocá-lo, pois não poderia saber o que aconteceria. A larva verde rajada de vermelho apa-receu nos primeiros dias do outono, era um minúsculo ser insignificante para o qual não seria depositada nenhuma esperança de grandeza. Toda a estação se foi e aquele minús-culo ser crescia conforme se alimentava das folhas amarelas do solitário girassol. Com a chegada das neves já não havia mais um campo de trigo ao nosso redor, era um deserto branco e triste.

A insignificante lagarta rajada de vermelho era então adulta e pronta para a crisá-lida. Veloz como já me acostumara a ver tudo, a lagarta se pendurou por um filamento no caule do girassol ficando na vertical e se revestiu de seda. Assim passou o inverno.

A crisálida era a grande transformação, estaria eu destinado a tal transformação ou continuarei a ser uma insignificante larva?

Na primavera seguinte ao botar do ovo da Strymon titus veio a sair do invólucro de seda a lagarta rajada que não era mais uma lagarta, mas uma bela e enorme Borboleta de Fo-go.

Aquele ser magnífico saiu de seu confinamento com dificuldade, mas é assim an-tes de conseguir a grandiosidade, não é? Aquela lagarta insignificante para a qual não era dada nenhuma esperança de grandeza e que ainda destruía as pétalas de um solitário girassol agora era o ser mais belo que eu jamais vira. Antes de erguer voo para sua nova fase, a imago, a recém-formada borboleta ficou parada em um ramo do girassol me olhando enquanto movia suavemente suas asas acromáticas que tomavam cor aos pou-cos, foi só um breve momento, mas que trago guardado na memória como o mais bonito da minha insignificante existência.

Quando foi alçado se primeiro voo, a Borboleta de Fogo olhou para mim uma última vez como se se despedisse, mas eu soube que não seria para sempre.

O mais belo da criação é que não nasce perfeito, ela se transforma, se renova, se cria. Uma Strymon titus não era uma bela e magnífica borboleta quando foi criada, ela se transformou, se renovou, ela criou a si própria como o ser mágico que vemos.

Isso com toda certeza é o mais belo da criação.

E depois que a Borboleta de Fogo se foi eu voltei a andar em meio ao caos de movimen-tos borrados de vultos sem rostos. Eu não conheço ninguém, eu não me conheço. Não tenho amigos, não tenho família. Eu sou sozinho, sou solitário. Sou como um girassol no meio de um campo de trigo, ou um ovo vermelho em meio a tantos amarelos e verdes. O que eu sou? O que faço aqui? Por que ninguém me nota?

Eu já tive as respostas, sei que tive.

Como posso saber quanto tempo se passou se não sei o que é tal fenômeno? Talvez tenha se passado muito, ou talvez nenhum. Foi em um movimentado porto europeu ao lado de um castelo de blocos enegrecidos pelas frequentes chuvas que a vi outra vez. A Strymon titus batia suas asas incandescentes agitadamente contornando cabeças e pessoas que se tornavam vultos velozes para mim, um risco laranja que marca o ar.

Segui como pude o seu voo, mas ela foi para o mar e eu fiquei no fim do cais cer-cado de galeões de várias pátrias que chegavam e partiam num mero segundo. Fiquei ali por dias na esperança que minha Strymon titus retornasse. Ela não retornou.

Virei-me para tomar outra vez a caminhada sem rumo quando o tempo que ressalto tanto estar acelerado parou. Foi coisa de um breve momento, tão breve quanto o voo de despedido para a imago. A primeira pessoa em um mar de desconhecidos que eu re-conheci e que me olhou nos olhos. Era uma bela garota de olhos verdes, nunca esquece-rei a sua beleza assim como não hei de esquecer a Borboleta de Fogo. Um simples mo-mento que parou foi suficiente para aumentar a velocidade ao meu redor.

Eu a perdi. Perdi da mesma forma que perdi a Borboleta de Fogo duas vezes e da mesma forma que perco a lucidez em suas visitas inconstantes.

A partir daquele momento meu caminho não era mais a esmo, estou atrás delas. Corro atrás dos únicos seres que fizeram minha existência valerem à pena, os seres mais belos e magníficos que jamais vi. Um caminho certo não há, no entanto. Tudo o que há é esperança e espero que dure o suficiente.

Decorrente do estado em que me encontro, refiro-me novamente à velocidade em que as coisas andam, vejo as pessoas e outros seres morrendo a todo o momento. É um fenô-meno breve que logo é esquecido, mas que marca. Não é agradável ver a morte várias vezes em um mero momento.

Em determinada época do ano me encontrei com uma panapaná que formava um tornado colorido. Os pequenos e belos seres alados me rodearam por algum momento, mas só um pousou em mim. No fim das contas um deles me encontrou: um dos belos seres que tive o prazer de conhecer. No meu dedo a Strymon titus movia suavemente suas asas de chamas como na primeira vez e tudo o que fiz foi admirar, mais nada, só fiquei degustando a imagem daquela criatura que se fizera perfeita.

Ela ergueu voo e desta vez estava mais lenta, suas asas já não tinham mais as for-ças de outrora.

Chegamos às grades da ponte sobre uma rodovia onde os carros riscavam o ar com as linhas luminosas de seus faróis. Nessa ocasião havia certa beleza, pois a morte não precisa necessariamente ser algo frio e sombrio.

A minha Borboleta de Fogo bateu suas asas pela última vez nas mãos de uma mu-lher, a única que eu sentia que conhecia e que parecia me conhecer também. Os movi-mentos ao redor, embora continuassem rápidos para mim, pareciam iguais para mim e aquela mulher. Ela sorria e, portanto, eu também. Aquela devia ser a minha crisálida, ali naquele instante eu começara a me tornar um ser grandioso e magnífico que poderia voar graciosamente livre.

E aquela mulher me disse seu nome, disse o meu nome e me amou. Nós nos ama-mos.

Depois de tantos anos eu consegui admirar a cor de minha Borboleta de Fogo, pois até então suas asas se moveram tão rápidas que se tornavam um borrão laranja, asas em chamas. Eu jamais os esquecerei, tanto a Strymon titus quanto a mulher depois que nos deixamos para o meu voo de imago.

Eu existo? Tudo ao meu redor existe? A mulher realmente me amou? Nossa filha será feliz?

Eu já tive as respostas

Sei que tive!

Strymon titus, a borboleta de fogoOnde histórias criam vida. Descubra agora