NOTA: Esse conto foi escrito para a publicação do Ninho de Escritores no Medium.
A temática era "presença" e escolhi uma abordagem sobrenatural.
Esse conto também foi publicado na minha página do Medium (https://medium.com/@carolrobaina) e na publicação do Ninho (https://medium.com/ninho-de-escritores)
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Na quinta vez
Com o espelho posicionado à sua frente, Jordan respirou fundo e fechou os olhos, iniciando o processo. Quando tornou a abrir os olhos, sabia ter acessado a outra dimensão, onde o tempo parecia estagnado e a exuberância da vida tinha um tom azulado que esmorecia lentamente. O lugar se deteriorava a cada visita, assim eram as coisas.
O cômodo era iluminado por luzes que vinham de fora e que nunca venciam a escuridão que tomava os cantos. A mulher parada perto do que parecia uma janela coberta por tábuas também estava se decompondo: o vestido carmesim rasgado, expondo um dos seios marcado por uma navalha, as anáguas puídas, as mãos juntas à frente do corpo, o coque desfeito e emaranhado com terra e folhas. Vê-la fazia o corpo dele se agitar, ansioso por protegê-la.
— Ainda está chovendo — comentou a mulher, embora sua boca não tivesse se mexido e nem poderia. A rouquidão da voz não era natural e sim resultado do desgaste de tanto gritar. Jordan conseguiu se levantar da cadeira de madeira, lutando contra o mal-estar que sempre o acometia quando se movimentava. Daquela vez, mais do que das outras, era necessário. O tempo estava acabando.
Deu dois passos atrapalhados e tornou a respirar fundo. A mulher, mantendo sua pose altiva, virou um pouco o rosto para olhá-lo. O que quer que fosse que iluminava do lado de fora, perdeu sua força para as trevas que avançaram, deixando o lugar pequeno, apertado, sufocante.
— Não está chovendo — Jordan afirmou, como já fizera antes.
— Está chovendo — ela tornou a repetir, a voz ainda mais rouca.
— Foi por isso que veio para cá? Por que estava chovendo? — ele deu mais alguns passos. A cadeira sumira, sentia a parede a suas costas. A mulher estava bem próxima. Daquela vez, conseguiu escutar o que parecia ser o som de chuva. Contudo, não era água, era terra batendo de forma constante na madeira. Horrorizado, olhou para cima, tentando entender. Pó caiu em seus olhos o fazendo perceber porque o som se repetia. — Não é chuva — concluiu, afugentando o desconforto falso.
Ela não sabia o que aconteceu? Concluir que era chuva era melhor do que entender que fora enterrada viva?
Não houve nenhuma reação da mulher. Ela virou totalmente o rosto para fitá-lo e Jordan não pôde deixar de lamentar que uma beleza clássica como aquela tivesse sido destruída. Ele sabia, vira quadros de Penelope nas grandes galerias. Era linda, de uma maneira dolorosa e quase perfeita. Encontrá-la assim, com o rosto cadavérico, sem um dos olhos e os lábios costurados era de partir o coração. Em nada se parecia com o famoso retrato que era exposto com orgulho pelo museu local, aquele pelo qual Jordan se apaixonara.
— Eu não consigo sair.
Ela comentou, cansada de explicar toda vez o que estava fazendo ali. Jordan tornou a respirar fundo, o desespero deixava o ar parado. A parede o empurrou para mais perto, quase tão perto que parecia que seu corpo se chocaria com o dela, mesmo sabendo que isso seria impossível.
A janela por onde Penelope sempre olhava se tornara uma brecha, desfeita com o tempo esgotando. Foi quando notou que não havia parede atrás dela, apenas tábuas arranhadas. Ele tocou as marcas, sentindo o esforço feito para fazê-las, sentindo o ódio e o horror. Se conseguisse se esforçar mais, ouviria os gritos contidos, as lágrimas e a desistência. Pensou que sufocaria e percebeu que estivera segurando o ar o tempo todo.
— Não tem o suficiente — a escutou murmurar, como se estivesse confessando um segredo, sabendo como ele se sentia.
Ele fechou os olhos quando a tontura veio forte. Tentou se apoiar na madeira, mas a atravessou, caindo em uma outra sala. Agora, o ambiente estava claro, iluminado por lampiões a gás. O cômodo era aconchegante, com um tom rosado no papel de parede. Uma pequena lareira acolhia cinzas, janelas saiam de foco, uma cama de dossel, um homem em cima de uma mulher que se debatia, gemia e apanhava. Jordan tentou se pôr de pé, mas não conseguiu. Olhou para trás, de onde viera, uma sórdida decoração de espelhos tomava conta da parede. Foi pelos reflexos que ele viu Penelope lutando por sua vida.
Ela conseguiu empurrar o homem e saltou da cama. O vestido já estava rasgado, o rosto estava ferido. Em um gesto rápido, o homem tornou a subjulgá-la. O grito dela rompeu algo dentro de Jordan, algo que ele não sabia possuir e que se perdeu. Seus olhares se encontraram pelo reflexo de um dos espelhos e percebeu os lábios feridos movendo-se "Jordan, me ajude".
Ficou preso no olhar dela, segurando novamente a respiração. Então, ela que ele estava ali. Isso o desesperou por saber que não poderia impedir o que acontecia.
"Dr. Santos?"
A voz soou pelo quarto, o despertando da terrível visão espelhada. A cabeça estava pesada e a dificuldade para respirar voltou. A luz difusa da lareira lançava sombras dançarinas que terminavam de contar a história que ele queria tanto evitar.
— ... Penelope... Então... Foi isso o que aconteceu?
A viu fechar os olhos e lentamente desaparecer, levando todo o cenário consigo. Em seguida, tudo ao redor dele foi perdendo a cor, vivacidade e ele foi arrastado para seu local de origem.
— Dr. Santos? Você está ouvindo?
O sacudiram de forma a despertá-lo do transe. Jordan ergueu uma das mãos, pedindo a pessoa que se afastasse. Gradualmente foi retomando a respiração, aliviado da angústia física e tomando consciência de que estava seguro. Tentou erguer as pálpebras pesadas e demorou alguns segundos para focalizar a sala clara e sua imagem derrotada refletida.
— E então? — a voz impaciente da empregadora foi a primeira a atingi-lo. — Essa já é a quinta sessão. Você deu um jeito na assombração? Posso vender a casa?
Ainda com o olhar vidrado de Penelope em sua mente, Jordan suspirou, livrando-se do peso que o contato exigia. Afastou o espelho usado para o processo. — Não — murmurou.
— Ah, isso já foi longe demais! — a mulher gritou e bateu na mesa, exasperada. — Eu quero você fora da minha propriedade... Caça-fantasmas... Eu sabia que era uma piada! — reclamou, batendo a porta ao sair.
Em silêncio, o assistente recolheu as coisas.
— Ele a enterrou viva — comentou.
— Quem fez isso?
— Eu ainda não sei, mas vou descobrir.
— Fomos demitidos — declarou, sem estar realmente preocupado — mas isso nunca o deteve antes, não é mesmo?
Jordan assentiu.
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[Conto] Na quinta vez
ParanormalO Dr. Jordan Santos tentava entender porque Penelope não conseguia ir embora.