Desejos em garrafas e memórias

67 12 199
                                    

— Nice? — começou a menina, antes que a enfermeira pudesse sair — Eu acho que vou para o céu.

— Por que diz isso pequena? — perguntou, parando o carrinho de medicamentos e buscando forças para exibir um pequeno sorriso carinhoso, enquanto voltava a face para olhá-la.

Marina parecia fazer jus ao apelido carinhoso que havia ganhado. Era uma garota baixinha para os seus oito anos, e em meio aos lençóis brancos e opacos de sua cama hospitalar, parecia ainda mais franzina.

— É que um anjo me visitou — respondeu inocentemente, sem hesitação — ele me disse que eu estava linda, e eu não sentia mais dor Nice, as outras crianças me deram um espelho, eu não tinha mais as manchinhas.

Ao falar isso, a garota posicionou o indicador abaixo dos olhos, onde olheiras arroxeadas contrastavam com sua pele clara.

A enfermeira a olhava com espanto, não que duvidasse dessas coisas, mas ela era apenas uma criança. Como poderia dizer isso sem nem ao menos hesitar?

— E por que você acha que vai morar no céu? — perguntou Nice — talvez ele só tenha vindo te ver. 

— É que ele me disse para não ter medo — respondeu Marina, fechando os olhos e sorrindo ternamente — que eu iria para um lugar muito feliz.

— Pequena... — retomou a enfermeira, começando a se mostrar atordoada — tenho certeza de que você entendeu errado, era um sonho, não precisa ficar com medo, é como você diz quando brinca de casinha: de mentirinha.

Por um momento, a garota fixou seus olhinhos castanhos em Nice, então, ainda sorrindo lhe disse algo que viria a ficar gravado nas memórias da mulher:

— Eu não estou medo, o céu é um lugar lindo, eu não sentirei mais dor, e posso correr sem me cansar... sabia que eu posso brincar de correr no céu?

Dizem que os pacientes sentem, mesmo quando não são exatamente sensíveis. Eles sentem a hora de alçar voo para além das brumas terrenas.

Em 20 anos de enfermagem, trabalhando no setor de casos terminais... Nice sabia como ninguém: se alguém lhe dizia que iria para o céu, você não deveria duvidar.

Mesmo que o alguém em questão, estivesse no auge de seus 8 anos.

— Nice? — perguntou — você pode ligar para a minha irmã?

— Claro — respondeu a enfermeira, desbloqueando a tela de seu celular e discando o número, era um ato tão frequente que não havia necessidade de que o contato estivesse salvo — eu espero do lado de fora, mas não demore.

Com esta última fala, Nice empurra o carrinho para fora do quarto e se acomoda na cadeira de espera do lado exterior. Ao passo que a menina posiciona o aparelho celular em seu ouvido.

— Alô? — A voz do outro lado respondeu ao primeiro toque — Marina? O que houve?

"Algumas coisas nunca mudariam." — pensou sorrindo.

Mesmo que ligasse duzentas vezes para a irmã, a pergunta sempre viria: "o que houve?".

"Deve ser uma consequência de estar doente" — pensou, mas logo espantou a ideia.

— Eu estou bem — respondeu — é que eu queria te pedir algo Elô.

— Não tem nada a ver com contrabandear chocolates, tem? — respondeu a outra, em um sussurro cúmplice.

Aquele era um pequeno segredo escondido, risos tomaram conta de ambas ao se lembrarem de como tudo era arquitetado, porém as risadas logo deram espaço para uma crise de tosse incontida.

— Marina...? — questionou Eloísa, com a voz hesitante.

— Não foi nada — respondeu a menina, contendo o impulso de tossir ainda mais — você lembra aquela garrafinha? Aquela das memórias... me promete que vai fazer o que está escrito lá dentro?

Silêncio a respondia, mas algo a fazia esperar pela resposta.

— Prometo, mas você não precisa se preocupar... vamos fazer isso juntas, não vamos?

— Eu sempre vou estar com você — à essa altura, a tosse começava a se descontrolar — não tenha medo... eu te amo...

E naquele instante, como se o Universo houvesse esperado para que a última palavra fosse proferida, os lábios de Marina estamparam-se mais uma vez naquele que seria seu último sorriso terreno.

Contrastando com os altos bipes do monitor, a equipe médica empenhava seus melhores esforços, enquanto Eloísa começava a gritar através do telefone que já havia caído das mãos da irmã menor.

Alheia a tudo aquilo, a pequena havia se fechado em seu próprio mundinho, sendo gentilmente erguida de seu receptáculo temporário, a garota pode sentir todo o amor possível quando braços a ergueram gentilmente.

Ela estava feliz naquele momento, não sentia medo, assim como sabia que não havia sonhado com tudo aquilo.

Sem hesitação, permitiu-se apreciar o voo ao lado daquele que a guiaria para a continuidade de seu caminho. Nos braços daquele ser celestial, Marina se permitiu sorrir outra vez, agora sem dores.

Ela iria para o céu.



As ondas se agitavam calmamente contra a areia, o sol começava a se despedir daquele lado do globo, lançando seus raios dourados contra a água, que se bordava em um dourado cálido e reconfortante.

Contemplando o horizonte, Eloísa podia vislumbrar a maneira como céu e mar pareciam se unir em uma única e bela coisa, ao longe as aves começavam a voar rumo ao recolhimento.

Enquanto se apercebia de todos esses detalhes, a garota sentia a superfície de vidro da pequena garrafa fazendo-lhe um peso suave nas mãos.


Sentou-se na areia, de maneira a permitir que as pequenas marolas quebrassem-se aos seus pés, e erguendo as mãos, destampou o frasco, permitindo que o papel repousasse entre seus dedos.

O desdobrou cuidadosamente, e pôde ler em uma caligrafia infantil e familiar: “leve-me ao mar”, junto à um desenho de uma garota com calda de sereia e o que imaginava ser um anjo.

Assustou-se ao constatar que Marina a havia desenhado ao lado do ser alado, enquanto a mesma sorria nas águas.

 — Se estiver mesmo ao meu lado — sussurrou para o alto ­— cuide da nossa pequena sereia, e deixe que ela saiba: eu a trouxe ao mar.

Colocando-se de pé, recolocou o papel na garrafa e a fechou novamente, ergueu o braço o máximo que conseguiu, e finalmente ganhou impulso para a arremessar nas águas. 

Ilusorium • Coletânea Onde histórias criam vida. Descubra agora