Capítulo Único

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As linhas suaves da pele sob a ponta dos meus dedos trazem um sorriso a minha face, o cheiro forte da grama que faz cocegas na pele descoberta pelo vestido, a sensação inebriante de se sentir etérea pelo sorriso estampado e aberto do homem a minha frente, os cabelos negros dele se destacando pelo verde da grama. Ele se aproxima o suficiente para eu sentir sua respiração bagunçar os fios ruivos do meu cabelo e um frio percorrer meu estomago na ansiedade por seu próximo movimento, quando a ponta de seu nariz toca o meu...

Acordo ofegante e meio confusa, sento-me devagar e o lençol amontoado a meus pés explicam a brisa que ainda consigo sentir circulando pelo quarto levemente e o ruído discreto do ventilador. Sinto aquela sensação meio nostálgica, uma familiaridade, como se estivesse consciente num sonho, mas estou acordada, meu cérebro se esforça para lembrar do sonho que sei que estava tendo. Ainda está muito escuro, me frustrando por saber que nunca saberei o que houve num sonho que deixa um calor tão agradável se espalhar no meu peito, apenas deixo meu corpo pesar novamente para trás e puxo o travesseiro, que nunca uso, para abafar o grunhido que escapa da minha garganta, não que alguém vá ouvir pelos corredores dessa casa vazia, mas alguns costumes são difíceis de se desfazer. O sono se aconchega pelos recônditos da minha mente e nubla os pouco claros pensamentos da minha mente, até porque a sede que sinto só vai ser saciada quando houver luz atravessando as janelas, não tenho coragem suficiente para cruzar os cômodos escuros quando estou sozinha de todo modo.

♥ᵜ♥

Espero o café ficar pronto enquanto observo a paisagem do lar no qual decidi me estabelecer. A máquina apita me dando um leve sobressalto, estou muito distraída essa manhã, semana, provavelmente o último mês. Monto a mesa com meu café, pão, e um bom queijo e presunto para acompanhar, a verdade é que minha rotina tem se tornado meio sufocante, e a culpa é toda dos meus sonhos, e o pior é que nem consigo me lembrar deles, sempre que a consciência chega, as memórias do sonho se apagam da minha cabeça e fica só a sensação da saudade, euforia e ansiedade, pela porta da cozinha vejo a porta do quarto que transformei em um estúdio. A verdade é que ela tem me assombrado um pouco desde a primeira vez que pintei o rosto de alguém que possivelmente nunca vi, mas que tem os detalhes de cada linha de expressão e nuance tão vívida em minha mente que sinto a sanidade se esvair a cada segundo de mim.

Saboreio minha comida, aproveitando a pacífica brisa que invade a casa pelas janelas abertas. Minhas férias começaram há pouco mais de uma semana e o tempo livre está me deixando inquieta, minha vida se resume em comer, desenhar, deitar-me lá fora quando o clima está bom e a árvore faz sombra na grama, desenhar, dormir, ler e pintar. Na verdade, pintar e desenhar a qualquer hora, parando toda atividade, mas minhas paisagens foram substituídas pelo rosto de um homem, bem bonito por sinal, mas o grande problema é por não saber de onde exatamente ele surgiu. Enfim, não posso me conter quando a vontade, e inspiração bate, deixo meu café da manhã pela metade e sigo o caminho até a porta para me afundar mais uma vez nos pincéis e tintas. Uma nova tela estava prestes a ser criada e tinha a forte certeza que os olhos mais límpidos que já havia visto – ou quase visto- estariam em enfoque na pele branca e os cabelos negros que ficavam tão reais que quase sentia a maciez dos fios.

♥ᵜ♥

As horas do dia foram se passando tão depressa, assim como os dias do ano, e aqui estou eu, mesmo sabendo que devo me levantar cedo amanhã para o trabalho, não consigo dormir. O estranho, como comecei a chamá-lo, não sai da minha cabeça, as luzes estão quase todas apagadas dentro de casa, exceto o abajur que projeta uma luz suave e frágil pelo ambiente do estúdio, do sofá onde estou sentada consigo ver o movimento dos ponteiros do relógio se estendendo pela hora avançada, e lá estava o desenho na folha de papel, o único que não consegui terminar. Odiava pensar que o sorriso incompleto poderia estar me impedindo de descansar, saber que o desenho não está concluído.

Suspiro num longo sopro, não resisto a pegar meus lápis e a folha, as linhas vão sendo marcadas no papel como se meus incômodos fossem descartados, só assim para que eu pudesse finalmente descansar. Agora nos detalhes finais da imagem de tirar o fôlego, me arrependo de ter deixado o celular no quarto, não estava com disposição suficiente para ir até a cama, sabia que dormiria ali aquela noite, apenas torcia para que dali conseguisse ouvir o despertador e levantasse na hora para o trabalho.

♥ᵜ♥

Meg está atrasada, espero que não tenha mandado nenhuma mensagem, pois nem mesmo sei onde meu telefone está. O dia está tão silencioso, e a espera por Meg me consumiu até que eu estivesse novamente em frente a tela. Estou quase finalizando quando ouço bem baixinho o som de um carro, nenhum que eu conheça, mas imagino que minha amiga arranjou alguém para fazer o trabalho pesado de carregar e transportar os materiais de reforma que sobrou da minha e dei a ela. Vou dando os toques finais enquanto o carro estaciona e suas vozes soam mais altas, eles passam pela minha janela e eu vejo, tão claramente quanto em todos os meus desenhos, nas minhas telas, na minha mente e nos meus sonhos. Pego o caderno tentando controlar a euforia que se apossa de mim, meu coração acelera com a possibilidade de realmente estar a pouca distância de quem ocupa meus pensamentos a meses, olho para as duas imagens e sinto lagrimas de felicidade começarem a se formar de modo lento sob os meus olhos, como se o próprio tempo se tornasse mais lento para que eu pudesse apreciar a beleza daquele segundo, e lá no fundo ter consciência que não estava louca afinal, fiquei ali, paralisada absorvendo a pesada carga do momento, até que a campainha toca me fazendo acordar.

AI

MEU

DEUS

Tem um homem que não conheço atrás da minha porta, ando devagar me perguntando o que aconteceria quando olhasse seus olhos, ele tem sonhado comigo também? Vai me achar uma louca? Não posso simplesmente dizer "oi gatinho, suas pernas não doem de fugir dos meus sonhos todas as noites? "

Chego a porta da frente e a campainha toca outra vez, bem mais alto agora que estou mais nervosa, passo a mão no meu cabelo tentando arrumar os fios e secar as quase lagrimas, toco na maçaneta e o mundo desaparece enquanto giro e puxo a porta. A primeira coisa que vejo é, os cabelos castanhos e os olhos expressivos de Meg que sorri e começa a falar.

_Oi, Gi. Vim buscar as tintas, e trouxe um par de braços para levar até o carro, esse é o Ian.

Sinto o ar entrando e saindo devagar quando olho por sobre o ombro dela e vejo a face que eu já sei de cor e olhos fechados. Então, tento parecer o mais normal que consigo, mesmo que esteja tremendo por dentro ao ver os olhos mais azuis que já vi estarem tão focados em mim, ao dizer:

_Oi.

Déjà vuOnde histórias criam vida. Descubra agora