3 de abril, 21h45.
Por um momento senti muito frio. Ele começou na ponta do pé, depois me consumiu por inteiro, até meu coração desacelerar, até se esvair por completo. Tudo agora parecia ter acontecido em questão de segundos. A bebida em minha corrente sanguínea, o gosto amargo do ferro no canto da minha boca, meu passos apressados para fora daquela casa e o carro mais rápido ainda, a marcação prestes a atingir o limite. Tudo depressa e sem importância, como os créditos de um filme que ninguém se dá ao trabalho de observar. Tudo em um piscar de olhos, literalmente. A grande luz ofuscante vindo em minha direção, me cegando, me fez ter a certeza do quão rápido fora essa sequência de acontecimentos. Então senti muito frio, mas ele se foi tão rápido quanto o momento em que minha pele o notou.
Agora eu não vejo nada. Ou melhor, a escuridão deste lugar é impercetível, mas totalmente sensitiva. Eu faço parte dela, já que todo o meu corpo ficou para trás, onde eu estivera há 1 segundo. Para minha surpresa, no meio desse lugar, nesse espaço escuro e solitário, fez-se uma luz. Diferente da primeira, essa despertou em mim uma dúvida. Uma dúvida que seria sanada apenas com uma escolha. Me pus a pensar numa resposta, mas esse intervalo foi o bastante para que a luz se tornasse uma imensa tela diante de mim. Com o dobro do meu tamanho, a tela mostrava agora imagens que achei ter esquecido. Imagens que há muito tempo deixei presas num baú sujo em minha memória. Eu mesmo, quando criança. Os fios castanhos do meu cabelo sendo guiados pelo vento, minha boca desenhando-se em um sorriso falho, com poucos dentes, e meus olhos azuis reluzentes, tão inocentes, tão...esquecíveis. Levei minha mão em direção à imagem, mão que agora não é mais um conjunto de pele, ossos e nervos, apenas um pensamento, uma ideia; e percebi que ela estava destinada a mim, como eu estava para ela. De repente ela se foi e outra tomou seu lugar. Agora eu via um banco vazio abaixo de uma árvore. Seria solitário se não fosse pelas flores que caiam em sua superfície. Era lindo. Algo em mim dizia que aquilo também era uma memória, uma que assim como a primeira, esqueci com facilidade. Mas subitamente, fui puxado. Metade do meu "corpo" ia em direção ao frio, ao carro despedaçado que deixei na rua escura antes de vir para cá, a outra metade ansiava para mergulhar nas imagens que continuavam passando na tela, e eu sentia que ali haveria "vida", por mais que fosse diferente daquela que eu possuía.
Cá estou eu, diante da dúvida que senti no começo, da escolha inevitável. O que fazer? Como acabar com essa angústia que desperta medo e lágrimas? Voltar para aquele plano, onde tudo era mais real e meu corpo ainda era feito de pele e ossos? Ou adentrar no desconhecido, mergulhar nas lembranças esquecidas, mas que parecem tão calmas e sólidas? Ao escolher a segunda opção, de algum modo eu sabia que não haveria volta, eu estaria de uma vez por todas vivenciando os momentos felizes e inocentes do passado cobertos pela névoa. Como num ato feito sem lógica, sem plano traçado, fiz minha escolha. A luz que apenas eu vejo, momento que apenas eu vivencio, paz que apenas eu sinto.
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Predestinado: o começo é apenas um reflexo do fim
Mystery / ThrillerE se no final de nossas vidas nos fosse dado uma escolha? Você poderia usufruir de sua existência eterna dentro de memórias felizes e intocáveis, mas para isso haveria de abrir mão de seu presente, de seu futuro repleto de coisas desconhecidas, talv...