Delongas do Universo

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"O acaso é apenas mais um nome para os eventos necessários que o universo nos dá através de nós mesmos, e que ainda assim não conseguimos compreender".

Era outono, a estação das folhas secas e dos céus mais bonitos, do tom alaranjado que preenche os olhos e aquece o coração, cidade silenciosa e olhos distraídos nem poderiam imaginar o que estava se desdobrando nas entranhas dos cidadãos. As folhas rodopiavam pelo ar, as flores silvestres nunca estiveram tão selvagens, as ruas denunciavam os passos de adultos tentando caminhar de cabeça baixa e crianças que não entendiam a razão por trás disso tudo.

O dia estava se pondo lentamente nos últimos tempos, talvez o relógio suíço não seja tão perfeito, ou talvez só queira brincar um pouco com os humanos, especialmente os desta terra.

Sabe-se que o outono é a estação da mudança, por isso, quando o dia caiu, mais uma das forças da natureza despertou.

Acordou sobressaltado, olhou em volta atordoado como quem acabara de ser pego em flagrante e aos poucos relaxou os músculos da face. Estava sozinho. Encarou as folhas à sua frente e perdeu-se em pensamentos, olhos desfocados e respiração lenta, parecia estar numa espécie de transe, e ninguém seria capaz de imaginar o que passava por sua cabeça.

Por fim, ergueu os braços para espreguiçar-se, havia passado horas a fio em seus aposentos, sentado frente à escrivaninha e acabou adormecendo sem se dar conta. Não é como se suas atividades de escrita fossem alguma novidade, já que afinal este é seu ofício, no entanto, ultimamente está escrevendo mais do que nunca, tanto que quase perdera a noção de tempo-, justo naquele dia tão importante. Não suportava atrasos e hoje ele quem seria o atrasado, o único culpado da história, suspirou pesarosamente ao encarar a janela.

Observava uma lua opaca, acompanhada por estrelas que pareciam brilhar especialmente para aquela ocasião, sobrepostas num manto denso e escuro. Sorriu para si, essa era sua paisagem preferida. Algo estalou em sua mente, levantou-se a fim de pôr um capuz escuro e espesso sobre seu froak coat, deu uma última olhada no ambiente, abriu a porta com cuidado e sumiu na noite.

Do outro lado da cidade, uma figura nervosa apressava o passo e suava sob seus caros culottes, enquanto sentia sua respiração quase faltar, por isso parou por um tempo e apoiou-se sobre seus próprios joelhos e começou a arfar, olhando sobre os ombros desconfiado. Ruas desertas ainda pareciam ter sombras de perseguidores ou curiosos chantagistas, chegou a considerar que estava delirando, elevou o próprio tronco e balançou a cabeça tentando afastar esses pensamentos. Seguiu caminho ainda suando.

Havia muitas coisas que não compreendia naquele momento e eis a maior delas: a tirania humana. Não que nunca tivesse visto ou chegado perto dela, mas essa talvez fosse a primeira vez na qual realmente conseguia experienciá-la.

Sabia que existia, sabia o que fazia, mas nunca lhe dera tanta importância, costumava ser apenas mais um detalhe na vida daqueles menos afortunados. Perguntou-se por quanto tempo esteve inerte.

Uma vida toda, pensou, pelo menos até agora.

Essa poderia ser considerada sua missão na Terra, e não morreria antes de concluí-la, por isso, mesmo que pudesse sentir o perigo pairando sobre si, a cada beco que percorria sua certeza só aumentava. Sabia que nada do que já está estabelecido mudaria tão rapidamente, tampouco mudaria por si só, e ele seria uma engrenagem. Mesmo que custasse sua cabeça, mesmo que a família Park o pusesse na lista de inimigos e exilados ou tentasse lhe causar mais cicatrizes-, havia aprendido há tempos que nenhuma punição poderia arrancar-lhe suas convicções, mas fortes convicções podem destronar um tirano. Estava absorto nessas divagações, mas não o bastante para deixar de ouvir alguém correr ali perto, semicerrou os olhos e analisou o cenário.

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