Capítulo único - É mais que suficiente

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Sentei-me no banco em frente ao aeroporto depois que Roger falou que iria buscar o carro. Meu corpo inteiro doía como se eu tivesse levado uma surra daquelas, mas era somente cansaço e desanimo pelo último serviço que fizera para meu pai. E depois ele reclamava porque eu não trabalhava com ele... Encostei a cabeça na parede fria as minhas costas, e apertei os olhos lembrando da última mensagem que ele me enviara:

"Ótimo serviço, Ian. O próximo será mais complicado mas você vai se sair bem."

Ri sozinho. Aquilo indicava o óbvio para mim: ele ainda não estava satisfeito. Meu pai gostava de desafiar pessoas até seu limite, até elas pedirem para desistirem, e ai ele parava. Minha mãe dizia que ele sempre fora assim e eu dizia que ele tinha fetiches estranhos. Ele não queria sujeira sob seu nome: treinava os melhores e sabia quais as melhores tarefas para cada um. Mas se ele ainda queria me testar, se acreditava que eu ainda conseguia ir mais longe, ele ainda não iria se dar por vencido.

E ele não estava errado. Eu ainda tinha muito a oferecer. Não queria, preferia me empregar em qualquer outra coisa a trabalhar para meu pai, mas eu ainda tinha muito potencial. Como um pai ausente ainda podia conhecer tanto do filho? Minha mãe talvez estivesse certa: talvez fossemos mais parecidos do que eu pensava.

Suspirei, espantando aquele tipo de pensamento e me espreguiçando. Eu precisava de um banho frio e roupas limpas. As minhas estavam necessitando de um tempo de molho e alguns dias ao sol. Resumidamente, eu não estava com o melhor cheiro do mundo, e muito menos elas. Percebi isso ainda mais quando um menino sentou ao meu lado e fez uma cara feia. Ri, fechando os olhos.

- Vai entender o porquê de minha bagunça quando for adulto, criança. – eu disse, me sentindo um velho sábio de uma montanha. Só então me dei conta que eu falara com um completo desconhecido, olhando para ele em seguida com medo que alguém próximo pudesse achar que eu fosse um tarado.

Mas ele estava sozinho. Olhava para mim depois de eu ter falado com ele mas nada disse, voltando o olhar para as próprias mãos. Elas estavam cheias de balas, que escapavam e caiam no chão quando ele tentava arrumá-las no pequeno espaço em concha. Olhei aquela cena com curiosidade: quando uma bala caia, ele deixava as outras no banco e, em um impulso, ia ao chão pegar a que caiu. Brigava com ela em uma língua que eu não conhecia, voltava a se sentar e a segurar as balas. Tentava se ajeitar no banco e lá ia mais uma bala e lá ia ele mais uma vez.

Aquela cena me deixou perplexo. Não sei se era sua ingenuidade que me espantava ou o meu instinto controlado de perguntar se ele era burro. O tempo pareceu de tornar uma eternidade diante daquela atividade simples e ridícula. Observei-o repetir aquilo umas quatro vezes e, na quinta, eu simplesmente o segurei pelo braço quando ele ia colocar as balas de lado para pegar a que caiu. Ele me olhou, confuso.

- Eu pego. – disse, me agachando em direção a sua bala.

Ele disse algo em sua língua, nervoso, mas eu o ignorei. Peguei a bala e me voltei para ele, colocando-a no topo do monte de balas em suas mãos.

- Pronto. Menos cansativo, não?

Ele olhou as balas e depois para sua esquerda. Entendi que ele tinha que ir pra lá e segurei uma risada: se ele fosse com aquelas balas daquele jeito, ia parece a história de João e Maria e deixaria um caminho de doces para trás.

- Você devia guarda-las em sua mochila. – apontei para a mesma com o indicador.

O menino desviou os olhos das balas para a mochila. Levou as mãos a ela mas não conseguia abrir o zíper porque ambas estavam ocupadas. Eu suspirei ruidosamente: ele era burro. É isso.

- Eu abro para...

Levei a mão até a mochila e parei no momento que ele bateu as mãos na minha. Não foi forte, mas me segurei para não emendar um palavrão diante de alguém que eu tentava ajudar. Algumas balas caíram na palma da minha mão que estava virada para cima e eu parei de falar na hora, não entendendo nada.

O menino olhou para as próprias mãos, percebendo que agora o monte de balas se encaixava perfeitamente ali. Ele ergueu o olhar e abriu um sorriso satisfeito para mim, que o olhava confuso e sem saber o que fazer com as balas.

De repente, ele se levantou, enfiou as duas mãos de qualquer jeito na alça da mochila e saiu correndo, com as balas bem protegidas agora em suas mãos fechadas.

- Hey! – o gritei, mas ele nem se virou. Continuou sua corrida desengonçada até simplesmente sumir. Eu, por minha vez, fiquei parado, sem saber o que fazer ou como deveria reagir aquilo. Olhei as balas em minha mão mais uma vez.

- Sr. Gale.

Virei-me para encontrar Roger me encarando com o cenho franzido. Parecia estar ali a algum tempo, me observando enquanto eu estava parado e encarando minha própria mão.

- Está tudo bem?

- Está... Acho que sim...

- Está sentindo algo ruim?

- Não, não. – eu fiz uma pausa, organizando os pensamentos. – Acho que eu acabei de passar por um momento daqueles na vida em que devemos tirar um aprendizado importante.

Roger me olhou como se eu fosse louco e eu não pude deixar de rir.

- E... o que o senhor aprendeu?

E, mais uma vez, eu olhei as balas. Mirei-as por algum tempo até simplesmente dar de ombros e guardar algumas no bolso, deixando duas para trás. Abri uma, enfiando na boca de qualquer jeito.

- Não faço ideia. Mas a bala é boa. Gosta de balas, Roger? Quem não gosta? Toma. Uma por dia para não dar caries. E agora, vamos? 

É mais que suficienteOnde histórias criam vida. Descubra agora