Uma quarta dimensão

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Duas pessoas se olhavam a cinco passos uma da outra. Olhavam-se como se não houvesse nada de mais importante no mundo a ser feito além daquilo que faziam: se olhar. Aconteceu numa rua movimentada durante o último carnaval, enquanto as demais pessoas, apressadas, andavam em direção aos compromissos de um dia comum. Quem notou o fenômeno foi uma velha, ela enquadrou um policial e o ordenou a tomar providências. O policial, descrente, não dava bola para o que a velha esbravejava, mas ao focar as duas pessoas se olhando espremeu os olhos para enxergar melhor. Ele viu e agiu. Falou com o parceiro e por bem decidiram chamar a equipe tática. Pois quem sabe os dois que se olhavam não portassem uma bomba?

A tática não demorou. De pronto, isolaram o perímetro a três metros e cercaram os dois que se olhavam. Pronto, armaram o carnaval, o número de curiosos ganhava corpo. As pessoas faziam pequenos vídeos enquadrando de fundo a atração. Chegaram também as emissoras de TV, os desatentos avançaram em direção da, até então, média aglomeração e o número de espectadores triplicou.

A multidão estava em êxtase diante daquela proporção descomunal, pois, se quase todos anseiam por acontecimentos extraordinários em seus dias, este era o ápice. A velha, a observadora prima, gritava: "Esses policias não passam de uns covardes. Vamos, covardes, abordem os dois sem vergonhas que se olham". Um dos soldados questionou baixinho, no meio da gritaria, próximo ao ouvido do colega: "Que porra estamos fazendo aqui, mano?" Quase ao lado deles um religioso discursava: "O vírus, meus irmãos, é do diabo e o Senhor é a salvação. Esses dois já estão contaminados, infelizmente eles não se renderam ao senhor. Então, vocês que não percam tempo. Rendam-se agora!" Repetia repetia e repetia.

O curioso naquele alvoroço foram duas pessoas. Uma senhora com Alzheimer que, de vez em quando, tinha partículas de sanidade, ela batia palmas sem parar agradecendo pelo lindo espetáculo de pureza. O outro um mendigo, o momento a desfilar ali sobre os seus olhos o lembrou das raras vezes que fora ajudado. Ele lembrou do olhar que jamais pudera esquecer.

Durante a confusão o celular do tenente vibra e ele atende: "Major, é você?" "O que os imbecis estão fazendo aí? Saiam imediatamente, porra!!! Caralho vocês estão malucos? Isso não passa de duas pessoas se olhando. Fodam-se todos vocês! E vão caçar problemas puta que me pariu!

Desligada a ligação, a polícia desarmou-se e foi embora. Os repórteres também. Pouco a pouco os cidadãos dispersaram retornando às suas trajetórias do dia. Alguns resmungavam contra os dois que se olhavam ainda estáticos. Porém, não infringiram o perímetro antes demarcado. A velha, calada, observou-os até acabarem e ao acabarem ela desejou o próprio fim.

Nem vale tratarmos de cronologia. Tudo fora tão veloz quanto a liquidez das importâncias deste tempo. Para você ver: hoje, passados poucos dias, não há uma só pessoa a se lembrar do caso.

E quando ninguém mais ligou, a não ser uma única pessoa a olhar contra os semblantes que sustentaram no olhar a plenitude da paz, os dois que somente se olharam saíram do transe. Voltaram a seguir cada um com a sua caminhada. Nos primeiros passos de costas um para o outro baixaram a cabeça e sorriram sem saber direito o motivo. Felizes, quebraram o pescoço, deram-se o último olhar e encerraram aquele dia como quem experiencia ser tocado por um milagre.



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O lado secreto do tempoOnde histórias criam vida. Descubra agora