Ironia

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Todas as crianças crescem. Sem exceções. E isso é uma merda!

A temperatura está negativa fora do carro. João e Miguel fazem questão de me trazer até meu novo emprego. Talvez pensando que eu fugiria como das outras vezes. Não posso mais escapar, é minha última chance de me tornar uma pessoa melhor.

Chegamos. A minha frente está o maior barco de pesca de caranguejos do Mar de Bering, o Neverland. Que ironia. Este foi único lugar que contratou um ex-presidiário, drogado e todo ferrado como eu. Tenho certeza que aquela pessoa daria risada da minha situação.

Despeço-me dos meus irmãos. Mesmo sem termos o mesmo sangue, estes meninos perdidos continuam ao meu lado. Cuidaram de mim nos piores momentos. Qualquer pessoa teria desistido. Ela desistiu. Por eles, eu devo me reerguer. Talvez, quem sabe um dia, eu torne a voar.

Entro no navio. Neve, cabos, ganchos e covos por todo convés. Dizem que o mar do norte mata sem piedade. Observando a minha volta, compreendo a razão. Cada equipamento parece uma arma pronta para causar um acidente.

— Você deve ser o novato — cumprimenta um homem às minhas costas.

Viro-me e, no susto, escorrego caindo de bunda.

— Que belo jeito de começar — sorri ele, estendendo a mão para me ajudar a levantar — Sou Adam, o engenheiro daqui.

— Sou Peter — apresento-me, aceitando a gentileza de meu novo colega.

— O capitão está resolvendo alguns assuntos no porto, vou levá-lo até nosso chefe de convés.

Agradeço com um acenar de cabeça. Não tenho coragem de encará-lo após tamanho fiasco.

— Calma, garoto! — começa Adam. —Todos aqui já passaram por isso. Cair não é nenhuma novidade para nós. O importante é como levantamos.

Os traços cansados em seu rosto transparecem seus anos de experiência. Suas palavras invadem minha mente. Ele sabe exatamente o que está dizendo e para quem. Minhas boas-vindas foram melhores do que imaginava.

— Smee! — Grita Adam.

Ao ouvir o nome, meu coração desaba. Eu devo ter ouvido errado.

— Ô Smee! —repete ele. — Cadê você, homem? O novato chegou e o capitão não está.

— Estou indo! — responde o homem barrigudo saindo da sala das iscas.

Minhas pernas tremem. Não pode ser! Mas é!

Ele vem até mim, arrumando os pequenos óculos sobre o nariz vermelho. Os anos não perdoaram sua face nem seu corpo. Eu devia estar com medo, porém ao invés disso, quero abraçá-lo. Minha boca teima em sorrir.

Smee não me reconhece. Não o culpo, pois minha situação é vergonhosa. Tenho tantas perguntar, mas nenhuma coragem para fazê-las.

Ele me leva para minha cabine onde largo a pouca bagagem que carrego. Em seguida, fazemos um tour bastante didático por todo o Neverland. As normas de segurança parecem infinitas. É engraçado ver um pirata preocupado com regras.

Assim que acabo de repetir em voz alta os procedimentos mais importantes, sou levado para a cozinha. A tripulação me recebe bem. São poucos, mas parecem muito unidos. Eles me passam várias dicas e contam histórias sobre seus passados não tão gloriosos. Pela primeira vez, desde que vim para este mundo, me sinto em casa.

— Homens! — grita um homem no convés. — Apareçam! Bando de cães sarnentos!

Percebo o quanto eu esperei ouvir esta voz. Ela não mudou nada. Quero vê-lo e, ao mesmo tempo, desejo sumir daqui. Que falta me faz o pó mágico agora. Uma dor apunha meu peito ao lembrar de Sininho. Contudo, minhas memórias tristes somem, enquanto sou arrastado pela tripulação.

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⏰ Última atualização: Apr 23, 2021 ⏰

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