Capítulo único

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Ela era uma criança, não poderia ter mais do que 10 anos quando os sonhos vieram.

Mas sonho é a palavra errada, já que sonho implica em algo bom, e isso que ela estava vivendo não era nada bom.

O certo seria pesadelo. 

Então, ela não tinha mais do que 10 quando os pesadelos começaram, e eles sempre tinham as mesmas características. Ela está sozinha, não há ninguém por perto, apenas ela em um lugar em que não sabe ao certo onde é.

E aí, ela começa a correr, e do nada seu ambiente muda, às vezes numa floresta, às vezes em uma rua grande, ou ruas suburbanas. Mas ela sempre estava correndo, e ela chega no que nomeou de "Lugar Seguro", que seria, bem um lugar seguro. E, sempre que chega no Lugar Seguro ela sabe que está, como o nome diz, a salvo, e seja lá o porquê de ela estar correndo, aqui não há motivo para tal.

Mas aos poucos, os pesadelos foram ganhando mais formas, e ela começa a correr de algo. E a corrida se torna mais longa, extensa. E em alguns momentos, ela podia sentir uma mão invisível passando por sua nuca, deixando-a com calafrios, ou tentando segurar a barra de sua roupa.

Foi por essa época que ela começou a acordar quando chegava no Lugar Seguro.

Seu pequeno coração batia rápido, e aquela sensação de quase toque da criatura que habitava seu sonho continuava, como um parasita. Claro, em sua concepção de mundo, pouco conhecimento, ela não sabia o que era e nem o que estava acontecendo.

Os desenhos infantis que passavam na manhã de sábado, e que assistia quase religiosamente, a ensinaram sobre pesadelos e que não precisava se preocupar com isso, pois é somente sua imaginação pregando peças em sua cabeça.

Afinal, porque ter medo de algo que não existe?

Mas pesadelos ainda eram pesadelos, e nos momentos que sucediam à perseguição, ela sentia o medo persistindo, como naquele episódio do seu desenho favorito onde a mocinha foi pega por uma planta criada por um cientista maluco e ficou presa entre as vinhas, que envolviam seu corpo, até que a heroína chegasse, derrotasse a planta e a salvasse do pequeno casulo que se formou ao seu redor.

E tudo o que ela queria naqueles momentos específicos eram heroínas ou heróis que a salvassem, mas então ela acordava e todos aqueles sentimentos não passavam daquilo do que ela imaginavam que eram.

Sim, ela poderia contar a seus pais. Mas ela queria se mostrar como uma menina forte, independente, apesar da pouca idade. A pequena criança era ingenuidade pura em acreditar em palavras tão vãs como essa.

Pensava que assim, quem sabe, ela poderia ir sozinha para a escola? Ela já era grandinha o suficiente para não aceitar carona de estranhos, por mais apetitosos que sejam seus doces, ou cair em sua ladainha de homem do saco. A inocência e ignorância são uma benção, não é?

Mas os pesadelos continuavam a evoluir.

Ela ouvia os pés correndo atrás dela, sentia mãos pegando em sua roupa, o leve sussurro da criatura em seu ouvido quando acordava. E os pesadelos não deixaram de ser pesadelos, mas no final ela sempre chegava no Lugar.

Acordava ainda com o coração batendo forte, com escoriações por onde a criatura relava. O pescoço parecia ser o local que a criatura adorava, havia sempre pequenos roxos que a menininha escondia dos pais. E os braços também, todos os dias amanheciam com marcas vermelhas, como se tivessem garras que tentaram pegar seu braço.

"Foram os mosquitos, ficaram me picando a noite inteira e me cocei", ou "eu caí da cama", foram as frases mais usadas pela pobre menina. Pensava que não eram coisas para se alarmar e ela acreditava no que dizia, e seus pais acreditavam também. Afinal, era a única explicação.

Pesadelos são pesadelos.

Nos pesadelos ela corria e chegava no Lugar, e era isso que importava no final das contas. Chegar ao Lugar. Porque ela também sabia que chegando ao Lugar tudo acabaria.

Até que um dia o pesadelo deixou de ser um pesadelo.

Enquanto corria para o Lugar, a criatura finalmente a alcançou. Segurou seu pulso, seu corpinho foi puxado para trás e ela caiu no chão, e tampou o rosto com os braços e ficou de olhos fechados, com medo de ver o que era a criatura, o que a estava perseguindo. Ouviu um grito horrível, que poderia ser ela, ou a criatura, como o de um animal no meio do abate.

Como em uma corrida, a criatura chegou primeiro na linha de chegada. Ela ganhou.

A criatura estava no Lugar Seguro. E agora era a vez da criança entrar nos pesadelos de pequenas criancinhas.

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