Eu odeio esta coleira. E minha raiva se tornou ainda maior quando meu dono a apelidou "carinhosamente" de Clotilde.
— Peguei a trevosa! — comemora Allan, quando puxa a corrente e me arrasta até a praia. — Vamos, James!
Lá vem o mesmo discurso de sempre.
—Sai desse corpo e vira gente! — brada James, seguindo o parceiro.
— Rápido, sua raposa maldita! — começa Julio. — A gente sabe o que você faz na Casa Noturna!
Apenas ignoro. Sinto meu pescoço estalando com o puxão.
— Batam até ela chorar! — diz Allan. — Um dia essa vadia vai ceder! Rápido, antes que o dono dela descubra!
Não me importaria de divertir algumas crianças desesperadas. Porém, se o fizer sem receber pelo serviço, meu mestre não me perdoará ou, pior, irá puni-los.
Eles descarregam toda sua frustração em mim. Seus socos e chutes não machucam tanto quanto gostariam, mas finjo que sim. No fundo, sinto pena desses garotos.
Eu os vi crescendo, e agora precisam lidar com a pressão de ainda não ter dormido com uma mulher. Humanos e suas humanices. É difícil compreendê-los.
Enquanto estou em minha atuação de desmaio, ouço uma voz feminina gritando
— Parem com isso! Soltem ela!
O alerta fez os agressores fugirem. Meu faro revela que um casal se aproxima. Não consigo resistir a curiosidade e abro os olhos. Uma garota de cabelos ensolarados se ajoelha ao meu lado e coloca minha cabeça em seu colo. Seu toque é como brisa de verão.
— Pronto — diz ela, sorrindo. — Eles já foram embora. Está segura agora.
— Say — pergunta o jovem que a acompanha. — É uma raposa de mana prateada?
Ele tenta me tocar, mas todos os meus instintos me fazem reagir e mordê-lo. O garoto puxa a mão por reflexo. Graças a sua rápida atitude, meus dentes só arranharam sua pele.
Espero que ele me empurre, xingue, bata. Entretanto, nada acontece.
— Por que você o mordeu? — pergunta a menina.
— A culpa não é dela, Sayuri. — diz o garoto, que me olha e pisca. — Eu não devia ter me aproximado tão de repente. Certo?
O que estou fazendo? É apenas uma criança de chi. Por que me assustou tanto? Passado o susto, ganho carinho na minha orelha e balanço a cauda em sinal de paz. Os ferimentos em sua mão pouco sangram. Ele não parece se importar com a dor, mas sei que está fingindo muito bem.
Hum...Isso é gosto de baunilha? Aproximo-me e lambo as pequenas lesões que causei. Ele tem gosto de baunilha! De que é feito esse humano? Meus devaneios acabam quando Sayuri se agarra ao meu pescoço.
— Quem é a raposinha boazinha? — pergunta ela. — Ela pode vir com a gente, Je... John?
— Raposinha? — questiona o rapaz, levantando a sobrancelha — Acho que ela tem dono — aponta para a Clotilde.
— E nós não podemos... Roubá-la?
Ela se aproxima do companheiro, fazendo uma expressão comparável aos melhores cachorros pidões que já conheci. Confesso que estou quase me roubando por ela.
— Sinto muito, Say. Só podemos mantê-la conosco até acharmos seu mestre.
Como esse cretino consegue dizer não?! Espera, o que estou pensando? Se ele me roubar eu explodo! Preciso agradecê-lo depois. Essa garota é um perigo!
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Entre o Navio e a Raposa
FantasyDe todas as coisas ruins que uma criatura mágica poderia sofrer no mundo de Orbis, ser escravizada e vendida como objeto sexual não era das piores. Pelo menos era o que Rubi, uma raposa prateada, achava. Mas a chegada de um jovem comerciante à ilha...