Prólogo - O 'novo' normal

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Fazia um sol de lascar. Em outros tempos, seu Agevaldo aproveitaria aquele calor naquela cidade de sol e mar para pegar umas ondas, ver as 'cocotas' e relaxar na areia da praia. Mas agora, no auge dos seus 64 anos muito bem vividos, tudo o que queria era chegar ao seu destino, visitar seu maldito amigo preguiçoso, e voltar para casa.

—Já estou velho para isso — pensava, enquanto caminhava com uma incomum destreza no meio de uma multidão esbaforida, e limpava o suor da testa com a palma da mão.

Mesmo que tivesse tempo, seu Agevaldo não iria à praia naquele dia. Na verdade, por mais que tenha passado por tantas coisas na vida, ele jamais imaginaria o que estava prestes a acontecer.

Pulou, com ajuda da sua inseparável bengala, duas poças d'água, vindas de um vazamento. Era incrível como aquele lugar tinha se deteriorado com o passar dos anos. Um lugar paradisíaco, onde outrora se sentia leve, feliz, suave, havia se transformado num lugar  descuidado, destratado. E ficava a metros de uma praia maravilhosa, talvez uma das mais maravilhosas do mundo:

Que saudades daquela Copacabana... — pensou, triste.

Seu Agevaldo subiu um pouco mais o seu caminho, sem olhar para trás. O calçadão de pedras portuguesas pelas quais tinha passado em tempos dourados, aos poucos deram lugar a um asfalto duro, e, avançando um pouco mais, a uma ladeira de pedregulhos . Os prédios se transformavam em casinhas amontoadas umas sobre as outras, de tijolo cru, sem reboco. As pessoas já não se empilhavam mais, porém as poucas que sobraram se entreolhavam de uma forma desconfiada.

Como fazia aquilo a cada 05 anos, seu Agevaldo já nem dava mais ousadia àquela desconfiança. Algumas pessoas o reconheciam, umas tinham vontade de lhe falar. Mas, como se dera conta com o passar dos anos, nunca seria o suficiente para vencer aquele medo. O medo, muito mais do que todo o resto, era permanente ali.

Em algum lugar, um barulho bem forte. Era um estampido de tiro. Tinha convicção que era de uma pistola semi-automática, de fabricação nacional. Se tivesse de chutar, aquele barulho seria de uma .380, com 99% de certeza. Para leigos, poderia ser confundido com alguma explosão de pólvora daqueles fogos de artifício, mas não era. Uns gritos abafados ao longe.

Nada disso poderia desanimar seu Agevaldo, afinal, por mais que aquilo não fosse comum durante suas visitas, ele sabia que poderia acontecer. Paciência, esse era o 'novo' normal no Rio, e ele não tinha nada a ver com isso.

Apertando a bengala agora no barro molhado e se apoiando numa grade enferrujada ao lado, seu Agevaldo agora estava próximo ao lugar. Antigamente, esse percurso, que somente poderia ser trilhado a pé, era feito na hora exata. Desta vez, ele estava atrasado em alguns minutos, o que não era do seu feitio. O seu grande amigo ia falar um monte de coisas idiotas por causa disso, como ele sempre fazia, por qualquer coisa. Velho é uma raça insuportável.

Aquele grande filho da puta - pensava e ria, sozinho, feito um doido.

Porém... Aquele dia não era o seu dia de riso.

A ruela estava totalmente vazia. E ano após ano, aqui não era comum. Não se via mais viva-alma. Escafederam-se todos. Em plena tarde de sol no Rio de Janeiro.

Todos os seus instintos o diziam para sair dali. Mas já estava perto da casa de seu amigo. Chegou à porta da frente, um gosto amargo na boca. A porta da frente da casa estava arrombada. Um filete escarlate escorria ao canto.

Não podia ser. Não aquele sujeito.

Entrou estupefato na casa, pisando no sangue, grosso, colando na sola do seu sapato lustrado, fazendo uma pegada vermelha enquanto caminhava. Sobre o chão, o horror.

Um rosto conhecido jazia, inerte, mãos sobre a cabeça. Sangue escorria como as águas da Baía de Guanabara.

Ao correr ao corpo, esbarrou em um rapaz novinho, de pistola na mão. De fabricação nacional. Com idade para ser seu neto, e com o rosto parecido com seu filho. Em um instante, pensou em pedir desculpas. Oras, esse povo novo que tem que aprender a pedir desculpas! 

A pistola mirou na sua cabeça, um outro estampido. Um barulho cortando o ar. Um outro corpo ao chão, tão inerte quanto.

Paciência, esse era o 'novo' normal, e ninguém tinha nada a ver com isso.

Só um... velhinho?Onde histórias criam vida. Descubra agora