Capítulo Único

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De volta a Nova Iorque, 1983. Às oito horas da manhã no Metropolitano, tentando decifrar o novo grafite na lataria ao lado da porta do metrô. Umas eram sobre drogas e sexo. Havia algo sobre cartomante. Tirando as camadas de tinta sobrepostas, Abigail lembrava-se bem de já ter visto algo sobre paz e amor também. Era interessante, a tirava da rotina monótona da mesma cor acinzentada do transporte, o mesmo barulho de conversa e máquinas e de Bonnie Tyler e Cyndi Lauper sendo cantaroladas por algum desconhecido ao seu lado.

Apesar de não acreditar por algum tempo que sua rotina era, de fato, exaustiva. Correr depois das quatro horas de sono, arrastando um copo de café para manter-se acordada o resto do dia, deixar a chave da casa debaixo do tapete para que seu pai soubesse que já havia ido e não incomodasse os vizinhos de tanto bater na porta. Andar rapidamente, pedir desculpas diversas vezes para não perder a hora. Então, conseguia pelo menos sentar-se durante o caminho todo, na maioria das vezes. Quando não, dava um jeito de equilibrar a bolsa e os livros.

Depois de alguns meses, pensou que seu dia poderia ser diferente; que não precisaria se prender ao cansaço do fim dele sozinha ou ocupar seu tempo livre com estudos quando não havia de levar trabalho para casa e cuidar de ser uma boa filha. Isso não aconteceu por usar os trinta minutos dentro do metrô para refletir sobre sua vida e os problemas mundiais. Para bem da verdade, não se importava muito com esses quando todos os dias precisava ter a certeza que teria o dinheiro para pagar as contas ao final do mês; refletir sobre a vida era um caminho perigoso, assim pensava. O que a levou sair dessa rotina, ainda que efetivamente nada houvesse mudado, foi um par de olhos azuis.

Não azul claro, quase cinza ou verde. Azul. No tom mais puro que Abigail lembrava-se de ter visto em seus vinte e cinco anos de vida. Azul como o céu no verão. Sem nuvens, sem nuances. Simplesmente... azul.

Era uma quinta-feira. Naquela manhã, até mesmo batucou os dedos sobre os livros grossos de Economia no ritmo de but girls, just wanna have fun. Ao seu lado uma mulher de meia idade com cheiro de cigarro e lavanda. No vão entre os assentos, um garoto que provavelmente não passava dos dezessete. Em uma das paradas do metrô, observou curiosamente os novos passageiros.

Era um hábito da mesma forma que analisava as possíveis novas pichações nos primeiros instantes da viagem. Um senhor de boina cinza, uma mulher com roupas curtas e transparentes demais — em uma percepção rápida, ele parecia ansioso para sentar e ler o jornal, ela parecia que não havia pregado os olhos borrados durante toda a noite. Por último, um rapaz alto, o terno parecia muito grande apesar de ele ser corpulento, de ombros largos e longe de ser franzino como o garoto de dezessete anos.

Ele acomodou-se no banco em frente ao qual Abigail sentava-se todas as manhãs, próximo à porta do metrô e ao amontoado de grafites. Ela quis levar sua atenção para outro lugar — talvez às janelas, mas o dia estava nublado para notar algo interessante e bonito do lado de fora —, porém, os vinte minutos restantes de sua viagem ao centro da cidade foram preenchidos por uma curiosidade quase palpável e vergonhosa.

Abigail desviou o olhar uma única vez, não queria ser notada durante aquela análise. No entanto, não por muito tempo assim. Não conseguiu, na verdade, e ainda hoje não saberia explicar os motivos para não tirar os olhos do rapaz de terno desleixado, uma bolsa quadrada de couro aparentemente bastante usada, sapatos longe de estarem realmente polidos; cabelos cacheados e baixos, notoriamente cortados há pouco tempo, lábios carnudos e pintados, como se estivesse sofrendo com o frio antes de entrar no metrô.

Ele estava nervoso, talvez ansioso também, e de alguma forma aquela ideia fez Abigail sorrir de lado. Sentiu-se curiosa para saber o motivo daqueles sentimentos alheios aflorados e apertou os livros em seu colo.

Azul EgípcioOnde histórias criam vida. Descubra agora