Capítulo 01 - Anjo e demônios

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Até então, um apagão. Um escuro total. Um incômodo constante. Como num pesadelo, onde se sente que está sonhando, mas não consegue sair, não consegue gritar, não consegue correr.

Imagens de uma mulata sorridente, em uma escada. Um garoto pulando na rua. Duas belas menininhas brincando na areia da praia, num dia de sol.

Um dia de sol. Na praia.

Coisas que deveriam trazer boas lembranças, mas algo retorcia, revirava por dentro. Aquela sensação instintiva de que algo estava errado. Queria sair dali, queria sumir. Mas as imagens se alternavam, em luzes e sombras, em ciclos que pareciam não ter fim. Como numa sessão de tortura, crava nas suas costas.

Tiros, gritos. Pessoas correndo desesperadas, casinhas moldadas nas pedras dos morros, pegando fogo. Num canto, uma menina maltrapilha chorava, agachada em posição fetal.

— Não chora, meu anjo, por favor...

Uma explosão, tudo pelos ares. A vontade de chorar permanecia, mas lágrima nenhuma caía. Só restava um angustiante nó na garganta.

Um calor infernal tomava conta. Agora não havia mais criança alguma ali, só cinzas.

Só cinzas.

De repente se via numa espiral de chamas, de cores bem vivas, mescladas. Cinzas, sol, morro, fogo, sangue.

Um rio vermelho fluía, viscoso, turvo, denso. Como as águas de uma baía poluída.

— Acorda, seu maldito!

Um homem ao chão, mãos à cabeça.

A vontade de gritar superou todas as barreiras. Uma explosão. Um corpulento bebê esperneava, ao fundo.

— Aaaaaaaaah!

Como num parto, encontrava-se embebido em fluidos corporais. Um lugar branco cegou seus olhos. Antes de recobrar as vistas, um cheiro nauseabundo de limpeza extrema lhe percorreu as narinas, e um irritante som de bip, os seus ouvidos.

O clarão aos poucos foi cedendo lugar a formas e contornos. Ao seu lado, a silhueta de uma senhora mulata. Outrora jovem e sorridente, desta feita a imagem que se consolidava era de um rosto bem mais envelhecido, com marcas de rugas, cansado e, ao mesmo tempo, com cara de espanto.

Agevaldo, por fim, enxergava.

— Rita, meu amor, é você?

No meio de um monte de cabos e ataduras, seu Agevaldo recebeu um poderoso abraço. O cheiro enjoativo deu lugar ao cheiro de xampu daquela mesma marca que ela usava desde sempre. Não sabia qual, mas poderia reconhecê-la por toda a vida. Nada mais além disso precisava ser dito, visto, ouvido ou falado.

— Ah, minha velha...

E ali permaneceram durante um bom tempo. Não precisava falar muito com Rita, eles tinham algo que era natural, se comunicavam no silêncio.

Rita desfez o abraço, segurou ternamente suas mãos, cheias de cabos e cânulas conectados. Sua expressão tinha muito a dizer, e seu Agevaldo precisava de respostas. Mas antes mesmo de ter tempo para explicações, com expressão séria, Rita perguntou:

— Com quem é que você estava sonhando, Agevaldo?

— Rita, eu não sei... Eu não estou entendendo nada.

— Não era com alguma mulher não, né? — o rosto de Rita era sombrio.

— Quê?

— Eu te conheço, velho safado. Nem em sonho você deixa de raparigagem!

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⏰ Última atualização: May 19, 2021 ⏰

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