Noite fria, céu escuro. Meu chá repousa calmamente sobre o parapeito de uma janela de madeira rústica, cuja tintura branca descasca continuamente, revelando a ação do tempo que tanto tentamos esconder ou disfarçar. Do vidro levemente embaçado podia-se ver a chuva fina, escorrendo feliz pelas folhas na copa das árvores. Um garoto descia a ladeira estonteante, com seu riso escandaloso, pulando de poça em poça, como se nunca tivesse visto água cair do céu antes.
Nesse cenário todo, eu sentia uma paz infinita, uma tranquilidade imensa com aquele barulho tão harmonioso, me sentia parte desse momento, mas não queria estar pulando de poça em poça, tampouco queria estar lá fora, tomando chuva. Meu papel nessa cena era ficar exatamente onde eu estava, sentado, inerte, jogado na minha velha poltrona desbotada, ouvindo o som da chuva, admirando tudo e todos, observando o que se passava ao meu redor, reparando em como meu biscoito de fubá sorvia meu chá de canela antes de eu leva-lo à boca.
O velho relógio na parede ao meu lado marcava o fim de uma tarde melancólica, porém, agradável e tranquila. Faltavam pouco mais de vinte minutos para as dezessete horas, o momento era perfeito para soltar uma música e esperar o desenrolar das cenas que se passavam diante de meus olhos naquela tarde.
A casa onde eu morava ficava na curva da rua Aurora, num ponto estratégico de onde se via toda a ladeira e ainda o começo da rua Fonseca. A vista alcannçava até um abacateiro que servia de sombra ao ponto de ônibus nos dias ensolarados. Logo pela manhã podia-se ver algumas pessoas esperando o coletivo para o centro, pessoas com o mesmo destino, mas não os mesmos objetivos. A maioria delas iam trabalhar, eram mecânicos, vendedores em lojas e entregadores, mas também haviam aquelas que iam fazer compras, ou visitar alguém em outro bairro.
Aquela era a única linha de ônibus que tínhamos no bairro, se quisesse sair para qualquer outro bairro da cidade, tinha que pegar o 368. Esse era o número da linha que percorria o bairro, não costumava se atrasar muito, sempre passava a cada quarenta minutos e terminava sua corrida na venda do Sebastião.
Levantei da poltrona recostada e dirigi-me à cozinha, em cima do fogão de ferro polido havia uma pequena chaleira decorada com flores em ramos. Próximo a ela eu havia deixado um pano bordado à mão feito pela dona Amélia e comprado na mercearia de seu Nestor. Peguei o pano e envolvi a alça da chaleira com cuidado, enchi minha caneca de porcelana que tinha cor de capuccino.
Levei-a a boca e provei o chá, precisava de um pouco mais de açúcar mas como me sentia um pouco impaciente, coloquei duas colheradas e voltei ao meu recanto mexendo meu chá, havia uma mesinha de cantoo feita em mogno ao lado da minha poltrona que eu usava para colocar o pote de biscoitos de fubá. Os biscoitos já estavam quase acabando, mas eu mesmo os fazia, era receita da vovó.
Na verdade, tudo que eu tinha era de alguém da família, a chaleira foi presente da minha mãe, que já a havia ganhado de sua mãe. Minha mesinha de mogno estava na família já há três gerações. Minha poltrona havia sido feita pelo meu pai, e minha casa foi construída há trinta e sete anos pelo meu avô.
Sentei-me novamente em minha poltrona, ela era muito confortável, conseguia me abraçar tão docemente, a espuma tomava, aos poucos, a forma do meu corpo e exalava aquele cheiro suave de lavanda, da loção que uso para limpá-la.
A chuva continuava fina, a tarde cinzenta, ao longe o fraco alaranjado mostrava o por do sol, a rua continuava quieta como sempre, uma leve movimentação no ponto de ônibus revelava que os trabalhadores chegavam do centro, alguns com bolsas, debaixo de seus guarda-chuvas e outros, desprevinidos, correndo, descendo a ladeira para não se molharem muito. Outros ainda entravam na venda de seu Sebastião para comprar o pão da tarde, caseiro, cujo cheiro invade toda a venda e as vezes entrava no ônibus, deixando todos os passageiros com água na boca.
A noite se formava, ia ser escura, dadas as circunstâncias da chuva. Era uma quarta-feira, a tv não exibia nada de interessante, o rádio também não, mudei de estação, achei uma de nostalgia. O céu já estava escuro, alguns poucos postes de luz iluminavam, ineficientemente, a rua Aurora, levantei os olhos em direção ao ponto de ônibus, na rua Fonseca, não havia ninguém esperando o 368.
Peguei um livro fino de capa dura na gaveta da mesinha de canto, acendi a luz de um pequeno abajur de chão perto da janela, espreguicei, vesti um suéter de croché feito pela dona Amélia, limpei meus óculos um pouco empoeirados, coloquei-os e comecei a ler. Seria uma noite agradável, mas também, seria uma noite fria.
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Na companhia da solidãoo
PoetryNem tudo que vemos conseguimos descrever com clareza ou com a mesma poesia que presenciamos, mas nada é belo ou encantador se não há alguém que o observe para contar.