Prólogo: por quê?

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     Eu não durei tanto tempo no orfanato. Entrei com os meus supostos sete anos e, no meu suposto aniversario de nove, fui adotado por um casal de estrangeiros que me levaram como um suvenir do Brasil para o tão endeusado Estados Unidos da América, o país da liberdade,  onde eu cresci com o medo de ser morto a tiros. Sim, um grande país desenvolvido. Livre? Só para alguns. Meus pais adotivos são os típicos cidadãos estadunidenses vendidos em filmes, brancos, loiros, olhos azuis extremamente claros com uma casa média num bairro médio. Só não são a favor das armas e nem dos republicanos, ou seja, minimamente descendes. Sempre foram ótimos comigo, não pecaram em nenhum ponto e eu os amo, mas eu não sinto que pertenço a eles, a este lugar. Pode me chamar do que quiser. Adolescente rebelde com complexo indie que escuta Lana Del Rey, ou se você for uma pessoa mais antiquada talvez o titulo de filho ingrato abusivo se encaixe melhor, mas sabe quando seu instinto te avisa que algo vai dar errado, ou que mesmo sem estudar você sabe a resposta daquela questão da prova, é esse instinto que grita em algum canto de mim. Minha terapeuta diz que pode ser um tipo de estresse pós traumático decorrente da minha tentativa inconsciente de recuperar as memorias fragmentadas, o que explicaria o aumento dos pesadelos e a insônia constante. Meus remédios estão ficando mais fortes e afetando ainda mais a minha saúde, talvez, daqui um tempo, eu precise ter supervisão médica diária. Fico muito triste pelos meus pais. Aqui não temos o SUS e os hospitais públicos não funcionam exatamente de maneira pública, o que os faz gastar muito dinheiro comigo. É óbvio que eu arrumei um trabalho depois da escola, sou atendente em um café, mas mesmo dando todo meu salário, não compensa quase nada. Além de não conseguir me sentir vivo aqui, talvez fosse melhor eu ir embora.

     - Filho - uma voz grossa veio de uma sombra na porta - vai se atrasar para a aula e o café já está pronto.

     Meu pai, acabou ficando desempregado na pandemia e tem cuidado em dobro de mim e da minha mãe nesses tempos. Faz algumas semanas que eu estou sem as pílulas, por isso tenho passado mais tempo só deitado na cama. Consequentemente meus pais deixaram eu voltar para as aulas presenciais, ficar em casa ia piorar as coisas. Me levantei e fui para o banheiro, tomando uma longa ducha fria. Meu reflexo não estava muito agradável, olheiras profundas, minha pele preta tinha se tornado muito cinzenta, meu cabelo estava imenso e desgrenhado, só meus olhos amarelos continuavam assustadoramente brilhantes. Sempre os achei divertidos, não só pela cor, mas também por seu formato de descendentes asiáticos. Se lá fora não estivesse chovendo, talvez eu sentisse o calor dos quase quarenta graus, mas como não é o caso coloquei um casaco rosa, calça preta e um tênis na mesma cor e atirei a mochila com os cadernos sobre o ombro, saindo do quarto e indo para a cozinha. Eu adorava meu quarto embaixo da escada, me transmitia uma vibe Harry Potter. Quando meus pais decidiram voltar para suas origens, a casa que eles tinham aqui só possuía um quarto usável, já que o outro tinha se tornado um armazém, e aí restava a garagem, a sala, a cozinha, dois banheiros e o pequeno espaço em baixo da escada. Arrumar o outro quarto até que eu pudesse usa-lo ia demorar muito tempo, então eu sugeri usar aquele lugarzinho e nunca mais sai. Só tem a minha cama, as prateleiras para por livros e qualquer outras coisa, um mini guarda roupa e luzinhas penduradas no teto. Aconchegante eu posso dizer.

     Entrando na cozinha, senti o cheiro da comida e eu já sabia o que era. Tofu mexido, e ainda vi a minha querida pasta de chocolate vegano, que eu uso para passar no pão ou comer com qualquer outra coisa. Minha mãe que me ensinou sobre veganismo e ela até ficou surpresa em como eu aceitei a transição fácil mesmo sendo tão pequeno. Meu pai é só vegetariano, ele levou alguns bons anos para conseguir larga as carnes. Minha mãe ainda não estava em casa, ela tem dobrado as horas de trabalho para conseguir nos manter e eu não ando a vendo muito. Devorei meu café, coloquei as duas mascaras e então parti para a escola, levava uns vinte minutos andando, mas usar os fones encurtava muito o caminho.

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