Capítulo Único

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Querida Cosima,

Ok, acho que depois dessa eu estou oficialmente elegível para me internar em um asilo. Quem ainda escreve cartas em plena era digital? E talvez além de velho eu também tenha perdido completamente minha sanidade ao estar aqui, despejando palavras em um papel e as direcionado a alguém que já morreu a tanto tempo.

Quem sabe ainda, ao invés de insanidade eu deva chamar o que estou sentindo agora de saudade, pura e simplesmente.

Sabe, às vezes eu invejo minha mãe. A S tem uma fé tão grande que nossa vida não termina quando morremos; que continuamos aguardando em algum lugar e que vamos todos nos encontrar novamente quando chegar a hora...

É uma ideia muito bonita, sem dúvidas, mas acho que não consigo ter uma convicção assim tão forte. Na maior parte do tempo isso me parece só mais uma daquelas muitas histórias que as religiões nos contam, uma espécie de conto de fadas feito sob medida para adultos; uma mentirinha para acalentar o coração pesaroso ou amedrontado deles.

Acho que não é muito diferente de quando nos dizem que a dor da perda passa com o tempo. Só consigo enxergar duas opções pra quem fala tamanha bobagem: ou essa pessoa está mentindo descaradamente para tentar consolar alguém de luto, ou ainda não perdeu ninguém que amava de verdade.

A dor pode diminuir, a ferida cicatrizar, mas a verdade é que ela nunca passa realmente. Vai estar sempre lá, esperando para latejar quando você escuta a música preferida da pessoa que se foi, ou quando come aquela comida vegana que fingia não gostar, mas que era só de implicância mesmo, porque no fundo sempre adorou; ou ainda naquelas situações em que se esquece por um segundo do que aconteceu e pensa em pegar no celular pra compartilhar a notícia incrível que acabou de receber. Mas confesso que a cicatriz da perda nunca me incomodou tanto como agora, às vésperas do aniversário de 15 anos da nossa filha.

Sabe, mesmo depois de todos esses anos às vezes ainda me surpreendo com essa coisa de ser pai. Aconteceu tudo muito rápido e sinceramente eu nunca tinha pensado em paternidade como uma coisa para a minha vida. Acho que também era assim pra você, não é?

Na primeira vez que fui visitar Delphine depois que ela se mudou para Montreal, eu a encontrei num estado completamente deplorável. Ela tinha emagrecido vários quilos em um intervalo de poucas semanas e estava o próprio urso panda com aquelas olheiras enormes no rosto. Ninguém esperava que ela fosse reagir bem com o que aconteceu, sempre ficou claro que você era a pessoa mais importante na vida dela, mas eu fiquei realmente assustado com o que presenciei.

A essa altura já não me lembro tão bem dos detalhes. Se não me engano tive uma mudança repentina de agenda e minha turnê de exposições tinha sido transferida para Montreal. Então nada mais justo que eu me hospedasse na casa da minha amiga, certo? Além de estar cansado de ficar em hotéis, achei que seria bom fazer um pouco de companhia, aproveitar a oportunidade de estar perto e dar suporte a ela naquele momento difícil.

No dia que sucedeu minha chegada, consegui fazer com que Delphine se abrisse um pouco mais comigo e ela me contou sobre o que vinha pensando recentemente. Pediu minha opinião, na verdade. Ela desejava fazer a inseminação com os seus óvulos, mas queria saber se não estaria de alguma forma te desrespeitando, já que vocês tinham conversado e ela sabia que não era seu desejo ser mãe.

Então o que eu consegui responder na época foi que... Que já não cabia mais a você essa decisão.

Confesso desde aquela época esse é um assunto que vez ou outra me faz parar e refletir.

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⏰ Última atualização: May 15, 2021 ⏰

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