O Sangue

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    Aquela presença era amedrontadora, ainda mais quando não se sabia de onde vinha, ou melhor, de quem. Havia trinta alunos naquela sala de aula e todos os dias Kyara passava pelo mesmo sufoco de procurar alguma daquelas cabeças viradas na sua direção. A frustração era tamanha, pois ela nunca via nada, nenhum olhar suspeito sequer, todavia sentia na sua pele uma quentura que só poderia ser causada por algum admirador secreto, e ela gostaria muito de saber quem era o responsável por aquelas ondas de arrepio diárias.

    Naquela tarde, as aulas acabaram mais tarde por conta de uma palestra sobre primeiros socorros e a jovem teve de voltar sozinha para casa. Suas costas doíam tanto que ela se viu obrigada a dividir o peso, carregando alguns livros nas mãos magras. Ela ia despreocupada com o fone de ouvido no volume máximo, totalmente alheia aos possíveis mal intencionados que poderiam cruzar seu caminho naquela rua estreita.

    Um calafrio. Como era possível ela sentir aquela presença se não estava mais na escola? Só podia significar uma coisa: estava sendo seguida. Desacreditada por ser uma vítima de um clichê daqueles de filme de terror, ela se vira sorridente. É tudo coisa da minha cabeça, ela repetia. Foi então que sentiu seu coração interromper as batidas para depois dar partida, acelerando a sístole e diástole. O sorriso murchou e a música passou a ser uma trilha sonora da cena. Tinha mesmo alguém atrás dela e caminhava em passos silenciosos.

    — Quem é você? O-o que quer? — Kyara tenta inutilmente manter a calma e não demonstrar medo.

    O encapuzado para no mesmo instante. A única parte visível dele era sua boca. Seria ela escura assim feito vinho, ou o seu tom pálido a fazia falsamente se destacar? O que importava, de fato, era o significado daquele sorriso de lado que ele dava. Kyara engoliu em seco. Seu coração dizia que a figura não era amigável, a mente pelo contrário. Todos os seus pensamentos pareciam depender do próximo movimento que aqueles lábios desconhecidos fariam.

    No segundo de uma piscada, aquele homem some. A jovem temeu estar alucinando devido a fome que sentia, pois passara o dia inteiro com o estômago forrado de uma mera maçã colida por sua mãe da macieira em perfeito estado do jardim na frente de casa. Suspira fundo, virando para seguir o caminho e tendo a segunda interrupção das batidas no peito.

    O grito dela foi pra valer, porém quem levou o susto foi o garoto que estava na sua frente. Os materiais dela caíram e fora ele quem se dispôs a catar. Kyara se abraçava um tanto envergonhada enquanto via ele juntar todos aqueles livros e cadernos que ela praticamente lançou ao chão.

    — Aqui está — ele estende o braço para que ela pegue, mas a garota hesita. — Perdão, não tive intenção de a assustar.

    Por que ela estava agindo daquela maneira? O coitado estava sendo cordial, ajudando-a a juntar a trapalhada que fez.

    — E-eu que devo pedir desculpas. Minha reação não foi nada elegante e... — E ela finalmente levanta o olhar para descobrir que estava diante de uma das criaturas mais fascinantes que já tinha visto. Os fones agora fora dos ouvidos.

    Os cabelos dele, negros como a própria noite, dividiam-se no meio e cobriam metade dos olhos, que tinham algo que a atraia, fazendo-a querer mergulhar naquelas íris de um marrom avermelhado e se perder ali. Seu rosto era magérrimo, não deixando de ser másculo com aquele maxilar angular. Mas foi a pele branca e aqueles lábios que a capturaram. Eram tão semelhantes e tão belos quanto os da figura que vira a alguns metros atrás dela naquele mesmo instante. Era impossível se mover para apenas alguns centímetros do seu rosto em tão pouco tempo.

    — Não devia passear sozinha por essas bandas — ele alerta, a voz soando como num anfiteatro.

    — Para não esbarrar em gente como o senhor?

❝𝐓𝐡𝐞 𝐁𝐥𝐨𝐨𝐝⚤❞Onde histórias criam vida. Descubra agora