Após o Fim de Tudo

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O desastre e o que veio depois... difícil discernir! Mas o que mais confundiu o Homem após o seu desencarne fora a escuridão inicial, seguida de uma luz intensa que tomou conta do vazio ao seu redor. Logo, tudo ficava mais claro, ainda que o Nada prevalecesse, sem muito o que iluminar. Seu corpo era nu, e sua mente pairava num mar de tranquilidade, como que embalado pelas mesmas ondas que, outrora, inundaram sua casa costeira durante o tsunami de porporções épicas, a cujo horror ele já parecia alheio. Tinha, entretanto, inúmeras dúvidas, e não as cogitava sem sorrir. "Estar no pós-vida. "Que interessante", pensava, enquanto flutuava na imensidão do caos primordial. Dava rodopios nos ares e isso lhe fazia graça. Também perecebera que já não respirava como antes, e que embora ainda pudesse inspirar e expirar, já não lhe era necessário. Divertia-se inspirando, com as bochechas cheias, e não soltando o ar, como se pudesse - e poderia - manter aquela posição eternamente. E foi no gozo de uns instantes em que se manifestou, à sua frente, aquele brilha como o sol; era um homem de cor, não totalmente negro, talvez de origem semitica. Suas roupas eram da mais explendorosa ceda, e sobre sua cabeça impunha-se com autoridade a coroa de um rei. Quando o Homem encontrou a paz, lá estava Deus. Notou em suas mãos ferimentos, talvez chagas. Logo se apercebeu de quem se tratava.
  - Olá. - Disse o Homem. O Santo riu.
  - Não são todos os que me veem e à primeira vista me cumprimentam com tanta naturalidade.
O Homem, contudo, divertia-se flutuando na imensidão, sentindo uma paz infinda. Quando se cansou de fazê-lo, endireitou-se e desceu ao chão, se é que o havia - mas parecia haver!, ficando de frente para o Santo.
  - Eu morri, certo?
  - Seu tempo na terra - Dizia o Santo, com a maior calma e amabilidade em seu tom de voz - foi muito proveitoso. Já era hora de regressar.
Perplexo, o homem indagou sobre sua família. O Santo respondeu que iam bem; que, apesar de tudo, sobreviveram à catastrofe e que agora estavam em boas mãos. Ele, e mais uns quinze que não estavam presentes naquele lugar, foram as vítimas fatais, como explicou o santo. O Homem continuava inquirindo acerca de seus familiares.
  - Onde está minha mulher, e onde estão meus filhos?
  - Protegidos. Foram resgatados pelo exército e agora estão protegidos.
  - Mas e nossa família? Como podem viver sem um pai?
  - A dúvida pesa em teu coração, mas o amor é eterno. É dito que o fogo não pode queimá-lo, nem a água molhá-lo. A terra não lhe suja e não lhe seca o ar.
"Você aprenderá, no devido tempo, que aquele que morre permanece vivo, na memória e nos atos. Sua alma imortal, entretando, terá de optar por certos caminhos.
O Homem ficou cada vez mais pensativo e pesaroso. Havia muita dúvida e muita confusão. E quando o Homem sentiu o desespero, lá estava o Opositor. Sua feição era a de uma máscara de teatro, sem cabeça por trás. Uma longa capa vermelha o cobria, e em uma mão segurava a máscara, e na outra um livro grosso de capa de couro, grandioso e ao mesmo tempo medonho.
  - E você, quem é? - Perguntou o Homem.
  - Sou aquele que teus parentes acusam de ter lhes tirado o pai. Durante eras eu fui julgado com todo o ódio que há na terra; toda má atribuição de valores era a mim atribuida. Pessoas queimaram na fogueira por terem supostamente falado comigo, mas eu realmente não tenho parte alguma nisso.
  - E o que você busca de mim, Ó Satana?
  - Eu não busco. Você me buscou durante grande parte de sua vida, e a mim atribuiu os vícios dos quais era acometido por conta própria.
  - Ele não se equivoca, mas não concordo que deva culpar a você por isso. - Disse o Santo, dirigindo-se ao Homem.
  - Então, qual vai ser? Serei punido?
  - O que a penitência traria de proveito para a harmonia das coisas? A culpa é a chaga que direciona todas as almas para os meus caminhos, mas eles se queimam nas próprias fogueiras; eu em nada disso tomo parte.
  - Então como podem ser seus caminhos?
  - Eu não os escolhi. - Respondeu o Opositor.
  - E tu - Dirigia-me ao Santo - Hás de levar-me para o céu?
  - Que é o céu se não o berço das galáxias e o túmulo das estrelas?
  - Quer dizer que não existe paraíso? - Aturdido, respondeu. O Santo riu.
  - Você fala como se nunca tivesse vivido.
O Homem agora caminhava com os dois, embora não percebesse, e seguiam um caminho, do qual o Homem pouco tomava nota. Não tinha muito o que pensar ou dizer, mas muitas dúvidas o assolavam, sem saber como respondê-las, ou mesno inquiri-las aos dois mestres da vida e da morte.
  - Qual é o sentido da vida?
  - Amai a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a ti mesmo. - Disse o Opositor.
  - Fala sério?
  - Sim, mas de nada adianta.
  - Por quê?
  - Isso nada garante que você seja amado de volta.
  - Mas Deus - E, dizendo isso, se voltava para o Santo - não é perfeito, onisciente e onipotente, além de ser a suprema bondade por detrás de tudo o que há?
  - Se eu lhe conhecesse - Disse o Santo - Assim afirmar-to-ia.
  - Não és Deus?
  - Se te agrada me ver como tal...
  - Pode me trazer de volta à terra?
  - Não a julgavas o inferno? - Inquiriu o Opositor. - Durante anos você se prostrou ante imagens buscando uma salvação de que não tinha ideia. Não viveu sua vida com medo de ideias abstratas de virtude.
  - Então a virtude não garante a bem-aventurança?
  - Que é boa, disso não se discute. - Argumentou o Santo.
  - Mas a fazia tão somente para entrar no reino dos céus?
  - Não estou entendendo.
  - Homem - Disse o Santo, com a mão em meu ombro. - Se te fosse dito que praticar a virtude te levaria ao inferno, você a praticaria?
O Homem ficou perplexo, e sem saber o que responder, invocou uma derradeira pergunta:
  - Aonde estou indo?
  - Ao lugar de onde viestes.
  - À Terra?
  - Algo bem antes disso.
  - A alguma encarnação passada, quem sabe num glóbulo distante?
  - Qual era a tua face antes de que tu nasceste?
O Homem ficou ainda mais perplexo.
Diante de si, uma porta de mógno massiva se impunha ante o caminho percorrido pelos dois. Quando aberta, nada se via. Era um ambiente vazio, sem som, sem luz, sem cheiro, sem largura ou comprimento, forma ou conteudo.
  - Aonde vou?
  - Gen 3;19
  - Ao pó?
  - Ao que você era antes de ser algo.
  - E por quanto tempo ficarei lá?
Ambos riram, ainda que a risada de Mefistófeles fosse mais sombria e amedrontadora.
  - O tempo não há.
  - Nem o espaço
  - E nem a matéria, suponho - Disse o Homem, absorto no vácuo à sua frente.
"Quer dizer que não vou me lembrar de nada, não sentirei nada, nem pensarei nada, por toda a..."
  - Eternidade - Completaram os Opostos, em uníssono.
  - Serei aniquilado?
  - Aquilo que você entende por você não foi feito para durar para sempre. - Afirmou o Santo.
  - Nem nós. - Retorquiu o Opositor.
  - Serei aniquilado?
  - Seremos.
  - Tenho medo, Bhagwan!
  - Você precisa ir sozinho.
  - Não quero deixar de existir. A morte é dolorosa, mas a ideia de que haja algo após ela nos consola. Quem me dera eu pudesse ficar aqui convosco eternamente.
  - Enfadar-te-ias e amaldiçoarias a todos os anjos, falsos ou verdadeiros, por isso. - Disse o Opositor.
O Homem pareceu receoso, sem saber o que fazer, sem entender nada do que lhe fora dito. Pensou que seria triste abandonar tudo, mas sabendo que assim que o fizesse, disso não mais se preocuparia, num ímpeto de coragem, saltou porta adentro, e nunca mais se ouviu falar do homem. Aniquilado, sem traços, sem resquícios, se não as memórias de seus familiares.

***

O cão, por sua vez, comia pedaços de carne junto com sua ração matinal. O vento soprava forte em Berlim, e os navios de Hong Kong ainda tardariam a atracar. Um garoto suéco foi morto num acidente de trânsito, e em algum lugar da Índia, na forma de um sadhu himalaio, o Homem entendeu tudo e sorriu, pela última vez, pelo resto da eternidade.

Odisséia na Escuridão: Contos de Fantasmas, Demônios e VampirosOnde histórias criam vida. Descubra agora