- Devo a eles revelar? - Perguntou Johann, ante à avidez com que sorviam suas palavras, como um vinho de mistério.
Herald inclinou-se na poltrona, entrelaçou os dedos das mãos e os levou ao queixo. Por alguns instantes pensou seriamente se valeria a pena relatar a Joshua e Katherine os acontecimentos da semana passada. Entre uma baforada no cachimbo do amigo ouvinte, Herald se decidiu:
- Já se faz mister.
- Pois bem...
Naquele momento, Katherine e seu marido, amigos dos irmãos que se encontravam, naquela tarde, na casa do mais velho a fins de assembleia, aproximaram as poltronas para melhor ouvir o que diria Johann.
- Há duas semanas e alguns dias, conheci um senhor cuja história remonta à aurora do tempo e tornaria, se escrita e comparada, a obra inteira de Bocaccio e Chaucer em livretos, dada sua extensão e profusão de minúcias. Ater-me-ei às de maior importância, entretanto, visto que o tempo é curto e os deveres muitos.
"Seu nome era Alasdair. Um escocês de proeminente barba ruiva e cabelos curtos. Trajava-se à moda inglesa, pois tão pouco tempo vivera nas Terras Altas que seu sotaque era um misto de escoto e londrino, e causava confusão a todos que o ouviam enunciar. Era alto, portava um capote longo e escuro, e uma cartola não muito alta. Conheci-o na estação de..., quando lia um jornal e parecia absorto nas manchetes e trivialidades que se relatavam neste. Sentei-me ao seu lado, à espera de Herald, que como sabem, estava voltando de uma visita à família que eu não pude comparecer. Eu tirava o relógio do bolso com certa frequência - vós conheceis como posso ser impaciente. Em uma dessas ocasiões - eram 15h47, ainda me lembro disso! - fez um comentário que de início não compreendi, dada à sua forma peculiar de se expressar, mas que logo vim a entender, assim que o pedi para repeti-lo.
- Não vos preocupais com o tempo. Todos os castelos hão de cair um dia.
- A que vos referís? - Perguntei-lhe.
- Decerto esperais alguém de quem tem pouca notícia, me engano?
- Nem um pouco.
- Pois eu também espero alguém, que não virá tão cedo.
- Vem no próximo trem, talvez?
- Não vem de trem. Vem de coche.
- Deveras? Talvez chegue mais rápido do que minha espera, então!
Ele riu baixinho, olhando para baixo, como que para ouvir o que lhe diziam as entranhas, que naquele momento pareciam exauridas, digerindo fatos escabrosos dos quais eu só teria vaga noção alguns dias após nos conhecermos.
- Senhor, acaso credes na imortalidade da alma?
- Sou um profundo admirador do Simpósio e de toda a filosofia que nele se esmiuça. - Respondi-lhe.
- Não falo de Platão, mas de Shelley.
- O poeta?
- A romancista.
- Não sou um ávido leitor de sufragistas.
- Mas deveis reconhecê-la como afrente de seu tempo!
- Isto sem dúvida!
Ele tamborilava os dedos no apoio de braço do banco. Inspirou profundamente, e virando-se para mim - conversara o tempo inteiro olhando para o jornal - apresentou-se.
- Alasdair Mac Domhnàll. Taverneiro.
- Johann Fitzgerald, ao vosso dispor.
- Acredito que o cavalheiro que buscais se encontra logo alí - Disse, apontando Herald em meio à multidão. - Este se aproximou, cumprimentando-nos.
- Boa tarde, cavalheiro. Johann!
- Herald! Este aqui é o senhor Mac Domhnàll, nos conhecemos há pouco.
- É um prazer conhecê-lo.
- Igualmente. - Respondeu o escocês. - Trabalho no pub próximo ao mortuário.
- Que ótima localização para uma taverna! - Riu-se Herald, não sem meu olhar de reprimenda.
- Deveras o pensais?
- Perdão, cavalheiro. Meu irmão às vezes é dado às graças dos epigramas. - Respondi-lhe. Ele deu risada, e nos fez tratar pelo pronome mais coloquial.
- Convido-vos para minha taverna, então, para que vejais que nada tem de mórbido, a despeito da localização.
- Herald, tens algum compromisso esta noite?
- Não que me lembre.
- Certo, cavalheiros! - Disse ele, levantando-se. - Providencio as taças e o vinho. Sereis meus convidados e nada pagarão. Vós, ao vosso tempo, providenciar-me-ão orelhas. Tenho coisas a contar a quem estiver disposto a ouvir.
- Esplêndido! Vejo que esta noite teremos boa companhia!
- E bom vinho, meu senhor! Não espere menos qualidade do Porto!
Ele então despediu-se, para que nos encontrássemos com ele novamente mais tarde da noite, e assim o fizemos. Às 20h30, saíamos de casa e nos encontrávamos perto do mortuário quando, de súbito, diante de nós pareceu passar às pressas uma presença etérea, levada pelo vento, acompanhada de uma brisa gélida que nos provocou sérios calafrios. Entreolhamo-nos, mas seguimos em frente, rindo do delírio mútuo pelo qual creíamos ter passado.
Enfim chegando à taverna, lá nos deparamos com um ambiente decrépita e obscuro; poucas luzes incidiam sobre os poucos bêbados que lá se encontravam, e o cheiro de mofo, aliado à humidade nefasta, dava àquele ambiente um ar de melancolia e treva. Aproximamo-nos do balcão, onde nos esperava o senhor Mac Domhnàll, que de prontidão nos ofereceu a bebida. Conversávamos sobre o mau tempo, e dado um momento obscuro de nossa embriaguez, mal podia lembrar-me de que nos queria contar algo, não fosse Herald mo lembrar.
- Tu disseste que gostarias de revelar-nos algo mais cedo.
- Deveras. Buscava o momento propício para inteirar-vos.
- Somos todo ouvidos. - Disse eu.
Ele então deu início à seguinte narrativa:
"Nasci em Aberdeen, e lá cresci, até meus quinze anos, quando vim à Londres para estudar. Cá descobri que tinha vocação para o comércio, e logo me vi empregado do Sr. Devon, antigo proprietário desta taverna. Não tendo descendência ou família próxima, acabei por herdar este recinto dada sua morte, há cerca de doze anos. Alguns anos antes disso, servia-o como copeiro e admnistrava as despesas. Foi quando conheci Keythlin, com quem tive um duradouro romance que nos levou ao matrimônio. Ela era tudo o que eu tinha de mais encarecido, e eu lhe fazia muito bem, pelo qual não me hesitava relatar. Não obstante, tive uma profunda recaída com a morte do Sr. Devon, que para mim era como um segundo pai, tendo o primeiro desaparecido da minha vida assim que cheguei a Londres. Encontrei consolo, e aí está meu erro, na bebida, e não na placidez da alma de minha amada."
"Ela então parecia cada vez mais abatida com minha situação; isto durou até que, alguns meses após minha recaída no vício, percebi que ela se tratava com muita amizade a um velho cocheiro, de cujo rosto não posso me lembrar, ainda que o tenha visto certas vezes. Era um sujeito misterioso, e estava convencido de que Keythlin tinha algum caso com ele. Quando, depois de uma noite repleta de amargura e regada ao mais torpe dos vícios, a bebedeira, vi Keythlin tratar com o mesmo, tão diante de meus olhos que me parecia fazê-lo com o intuito de que a visse. Perdi o controle, e avancei sobre ela. Como estava bêbado, não tive noção do que se passara até que acordei, no dia seguinte, estirado sobre o chão do bar, sem sinal de Keythlin. Fiquei pasmo, e recobrei os sentidos e a sobriedade assim que desperto como que num relâmpago. Daí, pus-me a contemplar meu destino e o que é que se tinha passado sem que me tivesse dado conta. Pensei, a princípio, que tudo se tratara de um sonho, e que deveria me abster de beber, pelo menos até me recobrar do susto, e ter com Keythlin de modo mais ponderado, e pedir-lhe desculpas por qualquer ofensa que pudesse eu ter cometido durante minha insânia."
"Não a encontrava em lugar algum. Não estava em casa. Quando voltei ao bar, notei um cheiro pungente de putrefação vindo da adega, onde guardava com apreço o melhor de nosso estoque. Ao chegar lá, a escuridão me ocultava o mais sórdido dos pesadelos, do qual fui acometido assim que acendi uma vela, e deparei-me com Keythlin morta ao chão, apunhalada no peito com uma adaga de prata, em cujo cabo se linham as iniciais: "A. M. D."
- Tuas iniciais! - Notei.
- Continuando.
"Tendo noção do crime que cometera, fui tomado por um terrível mau estar, e por uma culpa que me pesava toneladas nas costas. Eu perdera a noção da realidade. Naquele momento, parecia-me ouvir a voz do diabo cochichando em meu ouvido, murmurando segredos dos quais eu sequer me lembro, mas que apavoravam desde os pés aos fios dos cabelos.
"Percebi que a única solução seria esconder o corpo, e não tendo à mão nada se não o que via - vários tonéis de vinho, alguns nem tão preciosos quanto o que os cavalheiros estão a beber - tive uma ideia arriscada: decidi jogar seu corpo num dos tonéis, assim conservando no álcool sua pureza física, tendo a alma se perdido no etéreo assim que içei aquela faca aos céus para enterrá-la em seu peito."Assim que Alasdair terminou sua narração, meu irmão e eu permanecemos sobressaltados, e um silêncio tenebroso se instaurou. Olhei para Herald, e então para o meu copo: pareceu-me, num delírio súbito, ver boiando no vinho um dedo feminino, mas logo constatei que era tolice e provavelmente efeito da embriaguez. Mac Domhnàll então quebrou o silêncio rindo como um maníaco, e nos dizendo, com aquele forte sotaque híbrido:
- Deveras que creíeis? Ah, por Júpiter: se eu realmente cometesse uma loucura dessas, deveras que a contaria a dois cavalheiros que conheço há tão pouco mais do que um dia?
Restou-nos cair na risada, e foi como se a embriaguez tomasse conta novamente, findo o susto.
Frequentávamos o bar com assiduidade desde aquele dia, e ficamos grandes amigos do senhor Mac Domhnàll. Há uma semana, contudo, vimos que não abria mais a taverna, e nos indagávamos do porquê. Sem poder contatá-lo - não sabíamos onde morava, tendo nossos encontros sido tão somente lá -, pensávamos que decerto se mudara, voltando para a Escócia, ou visitando família. Seu gênio incompreensível e seu humor tão instável eram fortes indícios de que o fizera.
Foi nesta mesma semana que, caminhando pela ponte ..., nos encontrávamos longe de casa, e Herald reclamava de dores nos pés, assim decidimos procurar um coche.
Fomos até a rua ... e lá esperamos, sem, contudo, ver alma cristã que passasse. Quando enfim vimos se aproximar um cocheiro, Herald se apercebeu de algo e me conteve, quando ia falar ao condutor:
- Veja quem está carregando.
Assim que pus meus olhos no interior do carro, que se mostrava aberto, pude contemplar, não com pouco assombro, uma figura de barba ruiva e uma donzela de feitio feérico, tamanha era sua beleza. Pareciam, contudo, alheios à nossa presença. Quando o coche passou por nós, senti um calafrio descer a espinha, e Harald ofegava, não pelo cansaço, mas pelo assombro que sentira. Vimos então o cocheiro tomar seu rumo para um lugar desconhecido, quando fomos chamados de volta para a realidade por um segundo condutor, que nos ofereceu uma viagem. Assim que o pagamos, ele nos deixou em casa, e desfaleci no canapé, enquanto Herald mal pôde dormir aquela noite.- E então? - Perguntou Katherine.
- Na semana passada, dois dias após o incidente... - Continuou Johann - ...recebemos esta edição da Gazeta de...Johann, que a esse ponto se levantara e dirigira-se para a lareira, de cima dela tirou um jornal, que entregou nas mãos de Katherine. Lá se lia:
"Encontrados hoje, às 15h47, na Taverna de ..., dois cadáveres; um homem de quarenta e poucos anos, capote negro e cartola, e uma mulher, em cujo peito se encontrara cravado um punhal, em cujo cabo se liam as iniciais A. M. D., ambos de identidade desconhecida."
Katherine e Joshua estavam pasmos com aquilo, e só foram reavivados de seu estado de petrificação ao ouvirem tocar a campainha. Entrou a criada, a avisar que o cocheiro dos dois havia chegado.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Odisséia na Escuridão: Contos de Fantasmas, Demônios e Vampiros
TerrorUma coletânea de contos de terror e horror, contendo histórias como O Vigário Satânico, O Caso de Meg Anderson e até mesmo uma história do famoso detetive britânico Sherlock Holmes, O Oculto