Anhangá

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Enquanto eu estava fazendo as malas para o acampamento no dia seguinte, percebi meu pai à porta, recostado no batente. Ele parecia sério, mas era aquela a sua maneira. Via em seus olhos ainda a relutância em me permitir acampar com meus amigos.
  - Você já está com tudo arrumado? - Disse ele.
  - Só preciso encontrar minha sunga. Quero nadar na lagoa.
  - É bom levar um guarda-chuva.
E assim foi. Ele desceu novamente, enquanto eu tratava de encontrar o que faltava em minha bagagem. Sentia-me culpado por ter de deixá-lo sozinho pelo fim de semana, mas estava bastante animado com os meus planos. Argumentei comigo mesmo de que ele teria a companhia do Seu Valdir, que vinha em casa todos os sábados para jogar baralho com ele, às vezes convidando amigos. Mas eram as noites frias e solitárias que meu pai passaria que me preocupavam. Desde que mamãe morreu, ele não parecia muito contente com a ideia de solidão. Sentia que a noite era uma presença desconfortável na vida dele, pelo menos desde aquela noite no hospital. Para falar a verdade, enquanto escrevo isto, meus olhos chegam a lacrimejar.
Eu preparei tudo, desci à cozinha e tomei um copo de suco de maracujá para conseguir dormir. Meu entusiasmo estava nas alturas, e eu precisava descer à terra para poder descansar um pouco da agitação dos preparativos. Quando passei da cozinha para a escadaria, pareceu-me ver meu pai deitado ao sofá, estendido, com uma expressão vazia e silenciosa. Aquela imagem me fez hesitar por um momento, mas logo subi as escadas e fui para meu quarto. O semblante que meu pai demonstrava tardou em minha mente até que peguei no sono.
Como sonhos são caóticos por natureza, e geralmente pouco têm a dizer quando não se é um psicanalista experiente, pouco me ative às ocorrências oníricas daquela noite. Vi-me caçando veados no pantanal com meu pai, uma memória de meus cinco anos. Vi também pássaros de alumínio e bolhas coloridas, e por pouco não me afoguei na minha própria saliva, despertando no meio da noite como que saído de um pesadelo. Acontece que não me lembro de ter tido pesadelo algum. Ainda assim, minha respiração estava ofegante, e minhas pupilas dilatadas podiam distinguir parcialmente as formas do meu quarto na escuridão quase total daquela noite sem lua. Não havia fantasmas lá, e seria tolice pensar que haveria. O que eu viria a presenciar ainda não estava ao meu redor, e pouco sabia eu o quanto aquela casa era tão preciosa e segura, e que nela jamais precisaria temer qualquer coisa. Enfim, voltei a dormir.
Acordei por volta das oito da manhã, desperto pelo meu celular que apitava. Desliguei o alarme prontamente, a fim de não perturbar o sono de meu pai e o silêncio acolhedor que permeava o nosso lar. Descendo as escadas, vi meu pai também desperto, para minha surpresa, descascando laranjas e espremendo o sumo numa jarra. Cumprimentei-o, e ele sorriu para mim. Parecia estar mais contente do que de costume; na realidade, esta é uma das grandes qualidades de meu pai - sua resiliência. Passou pelo inferno e resistiu com tendões de aço. Ah, se com ele eu pudesse aprender, talvez pudesse ter agido com mais sapiência no momento oportuno.
Ouvi uma buzina lá fora: era o Evandro, que iria me levar no carro dele. Junto com ele estavam Matheus, Nadia e o Igor. Um outro carro levaria Felipe, Nanda e Priscila, bem como nossas provisões e alguma parafernália de *camping* que iriamos utilizar no local.
Subi as escadas às pressas e desci na mesma empolgação, com a maleta cheia à mão e uma mochila com alguns utilitários indispensáveis, como lanternas e uma bússola.
Meu pai ficou ao portão, conversando com o vizinho e com Evandro, quando cheguei com as malas prontas e os olhos brilhando de empolgação. Igor saiu do carro e me ajudou a deitar a bagagem no porta-malas. Logo que entrei no carro, ouvi meu pai nos desejar uma boa viagem, com aquele mesmo sorriso com que eu o vi descascar laranjas. Era um sorriso forçado, mas não à toa. Era seu modo de lidar com as marés baixas, e foi assim que eu o vi, do banco de trás do carro de Evandro, acenando para nós, reluzente como um anjo guerreiro, com suas asas cobertas em graxa e cinzas. "Meu pai é um grande homem, e eu faria qualquer coisa por ele.", pensei. Acenei de volta para ele, e assim que nos despedimos, ele entrou em casa e fechou o portão atrás de si. Eu ainda esperava que o Valdir viesse lhe fazer visita nesse dia. Quando me toquei, estava sonhando acordado no percurso do carro, que já se distanciara de casa há pelo menos uns cinco minutos. Alí estava com meus queridos amigos.
Evandro tinha 26 e fazia engenharia. Gostava de jogar bola com os amigos no final de semana, mas à insistência do irmão mais novo, Igor, decidiu levar o pessoal para acampar. Igor tinha uma coleção de pedras que sua mãe dizia que empoeirava o quarto. Era um verdadeiro geólogo em formação, e gostava muito da natureza, e era um fiel devoto das palavras de Rachel Carlson, assistia ao Cosmos de Carl Sagan e assim que terminasse o Ensino Médio, desejava ingressar na universidade e se especializar em ecologia.
Nadia namorava com Evandro há quatro anos, aos três anos de relacionamento, noivaram, e hoje vivem juntos numa casa alugada. Tinham dois gatos, e um terceiro que perdeu a vida na estrada. Nadia tinha cicatrizes nos braços, resultado de anos num relacionamento abusivo com seu ex-namorado. Com Evandro as coisas começaram a melhorar. Como casal, cooperam em tudo, e apesar de algumas esparsas discussões, sempre voltam a se acolher, um ao outro. Juntos são uma ótima companhia. Matheus é isolado, secretivo, mas boa gente.
Saimos da cidade às 9h30, quando chegamos na pista e de lá tomamos um caminho de terra longínquo.
O ar era mais limpo, e o sol não estava tão ardente naquela manhã de outono, estava agradável. Sentei-me do lado de Matheus, à janela, e de lá pude ver a engenhosidade da natureza com toda a sua primazia. Eucaliptos curvando-se ao vento, a brisa fresca levando o orvalho da madrugada sob o mato fresco e vicejante. O verde das matas densas, nas quais nos embrenhávamos cada vez mais. Ouvíamos o chilrear dos passarinhos, e era como se o mundo cantasse uma melodia de esperança tão tênue, como uma teia de aranha, que a um mero sopro poderia se desfacelar.
Enfim, quando percebemos adiante a Serra do Mar, a turma inteira se animou. Um carro passou ao nosso lado na estreita estrada de terra, quase riscando a lataria com seu retrovisor, e só depois de uma exclamação amigável que percebi que se tratava de nossos outros amigos, que acampariam conosco.
Entramos por uma trilha coberta pelas copas da vegetação tropical, como um telhado verde que nos deixava parcialmente no escuro. Seguimos essa trilha até alcançarmos uma clareira à beira de uma lagoa, ao pé da serra. Ela era ampla e comportava nossos dois carros, e ainda havia espaço para nossas barracas e fogueira. Naquele dia, já estávamos muito ansiosos com o acampamento, mas ficamos ainda mais animados quando chegamos. As águas eram claras, quase cristalinas, e a brisa da mata era refrescante. O chão era de cascalho, forrado por folhas que não permitiam que pés descalsos se machucassem. Evandro parou o carro, e Felipe logo em seguida. Nos cumprimentamos propriamente e começamos a fazer os preparativos para o assentamento. Havia algo de promissor naquela área, embora não soubéssemos exatamente o que nos prometia.

Odisséia na Escuridão: Contos de Fantasmas, Demônios e VampirosOnde histórias criam vida. Descubra agora