No porto de Sunscross, Trascan buscava por mapas ou informações de como se guiar sem as Três Marias. Mas nada, todos pareciam desesperados, falavam sobre as estrelas estarem mudando de lugar, sobre um buraco no céu e o desespero tomava conta do local.
- Mas isto está uma loucura. Não vejo portos nessa calamidade desde as últimas guerras.
- Capitão! - O imediato chegou afoito. - Ouviu os boatos?
- Apenas absurdos sobre um buraco no céu e estrelas mudando de lugar.
- Exato! Estão dizendo também que viram um pedaço de noite andar por ai, e um homem diz ter visto o céu dentro da boca e nos olhos de sua esposa, mas ela fugiu.
- Um louco! Loucura.
- Mas e se não fo...
- LOUCURA! Temos que sair logo de Sunscross, antes que todos vocês enlouqueçam junto!
- Certo Capitão. Mas há uma recompensa pela esposa. Acreditam que ela seja uma bruxa, e a inquisição a busca. Enquanto não voltamos ao mar, poderíamos ir atrás dela.
Trascan riu em debocha.
- Onde fomos parar, de ladrões de carga a buscar esposas perdidas. Se quiser, vá, mas não me unirei a esta loucura!
- Posso ficar com a recompensa então?
- Jamais! O que é feito pelo barco, fica no barco. Como imediato, todo o dinheiro que receber pela recompensa será dividido entre você, eu e o barco.
- Mas...
- Já não basta minha permissão? Se eu voltar atrás, não há busca alguma! Agora saia da minha frente.
Injustiçado e contrariado, o imediato deixou Trascan e foi para a taverna mais próxima em busca de informações.
- Céu em boca de mulher, buraco no universo. É o fim dos tempos! - Trascan esbravejava palavras em direção ao seu barco.
Ao cair da noite, em seu quarto de capitão, Trascan traçava possíveis rotas com ponto de referências que tinha anotado de suas viagens. Teriam de navegar perto da costa, não conseguiriam ir muito longe e precisariam sempre de informações.
"Permita-me"
- QUEM DISSE ISSO? FAUSTO! É VOCÊ?
"Permita-me"
- Permitir o que? REVELE-SE!
"Permita-me!"
A voz ficava cada vez mais grave e próxima, até uma sombra roxa com pontos estrelados aparecer diante do capitão.
- Permita-me entrar, humano desprezível, ou tomarei-te o corpo!
- Pois não permito! Que absurdo. O QUE É VOCÊ?
Olhando para a figura, o capitão identificou a constelação cruzeiro do sul.
- Não! Não é possível. - Virou de costas para a sombra e gargalhou alto. - SÓ POSSO ESTAR TÃO MALUCO QUANTO ESTE POVO, OLHE PARA MIM, FALANDO COM UM PEDAÇO DO CÉ...
Antes que pudesse terminar sua fala, sentiu o corpo ser tomado em um forte empurrão.
- Você não passa de uma raça miserável que já deveria estar extinta, se não me permite usar seu corpo, eu mesmo tomarei, e se não me obedecer e me ajudar a achar Hunna, terá a morte bem a frente de seu nariz, de modo doloroso, lento. Então é bom que me obedeça humano, pois sou seu soberano!
Trascan tentou se enforcar, quem sabe aquilo tiraria de si aquele espectro, mas antes que pudesse chegar ao pescoço sua mão ficou escura e brilhante, como a noite.
- Não tente nenhuma gracinha humano! Não sabe com quem está lidando.
- Por que eu? Saia de meu corpo e encontre outro! Fausto quer encontrar seu pedaço de céu!
- Fausto é ainda mais insignificante que você. Homens te obedecem, você tem poder. É disso que preciso. Você pode encontrar Hunna para mim e assim voltarei com ela ao nosso lugar.
- E o que ganho com isso?
- De qualquer modo ganhará a morte. Se eu deixar seu corpo, deixarei apenas uma casca, não pode um humano carregar em si a sabedoria do universo e resistir a isso.
- Então me condena e espera que eu te ajude!
- Não espero, sei que vai. Ou me ajuda ou tomo-lhe o corpo!
Não havia mais saída. Estava arruinado. Sua última missão em vida seria buscar uma esposa fugitiva que tinha em si um pedaço de universo.
- Um merda de pirata. É o que sou. Eu lhe ajudo, mas deixe-me no controle de meu corpo.
- Não me faça ordens, imundo! Poeira estelar estúpida! Tentarei mais uma vez conviver com o que resta de você, e se não me permitir o que eu quiser, tomarei seu...
- Sim, sim, já entendi, tomará meu corpo. ESTÁ BEM! - Respirando fundo tentou se acalmar. - Vamos tentar novamente. Meu nome é Trascan, e sou capitão deste navio.
- Roran.
- Roran, o meu pedaço pessoal de universo.
- Não sou seu! Nada aqui é seu! Você é apenas uma carcaça imun...
- E você precisa desta carcaça imunda, então vamos começar com respeito aqui. Sabe o que é respeito? Bem, eu também não, não é como se me chamassem de cavalheiro por aí... Mas vamos tentar conviver!
Roran não se pronunciou mais pelo resto da noite. Sabia que não podia confiar nos humanos e esperava que Trascan fosse inteligente o suficiente para mantê-lo em segredo.
- HUNNA! ELA ESTÁ MORTA!
- Sim, foi o que vi em suas memórias. Você a matou. Pode procurar o punhal.
Mas não havia punhal, apenas o forte fedor do corpo que se desfazia.
- Você não disse que eu a tinha matado com um punhal? Não há sequer marca alguma de punhal.
Não havia de fato nenhum corte no cadáver, mas via-se que sua boca estava praticamente desintegrada e toda a região de seu pescoço estava queimada.
- Veneno... Mas, como eu daria veneno para ela?
- Solari, deixe-me ver a memória de novo.
- Não sei se consigo...
- Vou tentar apagar você, quem sabe assim consigo acesso à memória.
Hunna, dentro da cabeça da jovem, desligou-a, colocando-a num sono profundo. O corpo de Solari ficou todo da cor do céu noturno, Hunna havia tomado posse de seu corpo.
- EU NÃO CONSIGO... Por mais que eu te odeie... Eu não consigo...
Após um corte no tempo, já estava noite, e aos pés de Solari estava Loren caída com a boca espumando. Próximo da porta, um frasco. Provavelmente havia rolada para lá quando a defunta caiu estrebuchando.
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O mundo em Hunna.
FantasíaHunna, um pedaço do universo, decide viver entre os humanos como uma, a fim de entender seus comportamentos. Solari é encontrada por Hunna a beira da morte, e, suplicando por misericórdia, tem a vida poupada.