Capítulo 1

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Naquela noite excepcionalmente fria, o vento chicoteava meu rosto enquanto os galhos pontudos das árvores arranhavam meus braços nus. Antes um adorável vestido branco esvoaçante parecia perfeito para a ocasião: ficar deitada sob as estrelas e comer marshmallows com minhas irmãs, agora, trocaria toda a prata do mundo por botas quentinhas e um grosso agasalho. A floresta parecia muito mais assustadora agora que estava banhada em escuridão e acompanhada da leve garoa que caia sobre meus ombros. Talvez os ferozes cavalos que relinchavam durante o galope rápido me perseguindo contribuíssem para essa atmosfera sombria.

- PARE EM NOME DA COROA!

Mas tudo o que eu fazia era continuar correndo.

Meus pés se moviam por conta própria, correndo tão rápido que eu mal conseguia desviar das pedras no meio do caminho. "Como foi que cheguei nessa situação?" – Perguntava a mim mesma enquanto me forçava floresta a dentro. Gostaria de dizer que não sei quando me perdi, mas lá no fundo eu sei. Só eu sei. A dor de reconhecer que a única culpada pela sua ruína é você mesma é pesada demais de se carregar. Uma vez ouvi que a dor corrompe o mais nobre dos corações, não importa o quanto lute. Só que não foi a dor que me trouxe até aqui, foi o amor. Um amor tão grande que chega a doer. Tudo que fiz foi por amor... mesmo as coisas mais grotescas. E estaria mentindo se dissesse que me arrependo.

E esse é o maior problema: se precisasse, faria tudo novamente.

Não me arrependo nas noites em claro planejando o próximo movimento dentro daquele grande jogo de xadrez; nem das mentiras, grandes ou pequenas que contei. Não se pode ter tudo o que anseia, aprendi isso desde muito nova. Senti o que é a dor da perda, da falta de um amor que foi substituído por outro. Aquele vazio nunca vai embora, ele se torna parte de você porque a vida sempre vai te acalentar, fazer com que se acostume até mesmo com o que é ruim. Troquei o amor de alguém com quem sempre sonhei por um amor diferente, que não me toca, não sussurra promessas no meu ouvido. Mas eu sim. Sussurro promessas que hei de cumprir, estando viva ou morta.

Esse tipo de amor não é fácil de compreender ou de sentir. Mas amar é assim, não é, nem de longe, tão belo e fantasioso quanto nos livros.

Lágrimas embaçam meus olhos quando todas as lembranças invadem minha mente de uma só vez. Me forço a parar um instante, incapaz de assimilar tudo o que está acontecendo. Minhas irmãs lampejam sorrindo, se divertindo na nossa biblioteca como se não houvesse nada com o que se preocupar; a caixinha de música toca ao fundo e Calíope rodopia pela saleta. Mas então vem a neblina que me deixa torpe e aí... o sangue. Tanto sangue... ele mancha minhas mãos, meu vestido... mancha a minha visão com o mais aterrorizante tom. A batida do meu coração tapa meus ouvidos, o nó na garganta e os soluços me impedem de respirar... me sinto aflita demais para pensar ou agir com clareza. Só quero fugir. Fugir deles; de mim, das lembranças que insistem em voltar. Meus pés retomam a corrida quando o solo vibra com o galope dos puro sangue enviados diretamente do Vesúvio para me buscar.

Maldito coração. MALDITO CORAÇÃO!

A floresta então se abre em uma grande clareira que é iluminada pela fraca luz do luar. À beira, o que parece ser um precipício, na verdade é uma violenta cachoeira cujo o final não é possível ver, mas sei que desagua no mar pelo suave cheiro de sal. Um calafrio percorre todo o meu corpo que fraqueja de exaustão, cansado de lutar, correr e sobreviver. A Rainha que um dia fora riria ao me ver nessa situação. "Seu coração te levará a cometer os mais hediondos crimes. E você vai pagar por todos eles... com sua alma"

Quantas vezes não disse isso as minhas irmãs? Quantas vezes as repreendi por se deixarem levar por lindos sonhos? Elas mereciam todos os belos momentos que sonharam, mas uma realidade dura e fria as fez seguir por outro caminho, o caminho pelo qual eu as guiei, cheio de luta, mentiras e sacrifícios.

Meu peito dói ainda mais ao lembrar de seus rostos alegres que foram maltratados pelos anos. O som da cavalaria se tornou cada vez mais alto e eu ainda estava no centro da clareira, presa por lembranças dolorosas demais. Vamos, pense, pense, PENSE!

Entrar na floresta novamente seria um erro, não correria o suficiente para despistá-los; me esconder nas árvores também não serviria de muito. Tinha a impressão de que quem quer que estivesse me rastreando, conhecia meus truques. As opções estavam se esgotando, assim como o meu tempo. Será que viver valia esse esforço todo? Por um momento pensei em como seria me entregar aos carrascos com o queixo erguido, cheia do orgulho e fúria que me motivaram nos últimos anos... Não. Me render é admitir que fui derrotada, e eu não fui! Eles podem ter tirado grandes coisas de mim, coisas importantes, mas eu sempre me mantive de pé. Minhas irmãs e eu não pereceremos, não ajoelharemos diante de ninguém!

- RAINHA V, NÃO SE MOVA. – a ordem soara tão melancólica que mais parecia um pedido vão. Saindo das sombras da floresta e adentrando na clareira, o líder dos meus perseguidores me encara, seu semblante transparece uma dor quase insuportável e eu sei o por quê. – Você não tem mais pra onde fugir. Renda-se ao Vesúvio e volte conosco com honra para pagar por seus grandes crimes.

Não.

Meu peito doía demais. Suportaria a guilhotina, um tiro no peito, três dias de tortura... poderia suportar a dor que fosse... desde que eles não estivessem ali para ver. Não assim. Não naquele momento de tamanha fraqueza.

O restante da cavalaria se apressou a cercar as outras saídas que levavam à floresta. Alguns cavaleiros me lançavam expressões de puro ódio em rancor, enquanto outros evitavam me olhar nos olhos, talvez por vergonha ou em consideração a rainha que estavam prestes a matar.

- Sabe que não posso fazer isso... – Minha voz era tremula, me sentia pequena e frágil, incapacitada de me defender. Dar ao Vesúvio esse pequeno momento de fraqueza era demais. Me recompus como pude. – Não permitirei que façam um show e tripudiem sob minha morte! – Nesse momento, meu peito se inflou e ajeitei a postura, tomando um tom de voz forte que fez alguns dos guerreiros estremecerem. – Mate-me aqui ou me deixe partir.

A qualquer um que não nos conhecesse, isso poderia ter soado como uma afronta, eu estava rindo na cara do Capitão. O que não sabiam é que se tratava de um pedido, uma súplica disfarçada. Meus olhos transbordaram todos os sentimentos que não poderia dizer: carinho, frustração, cansaço... sentimentos que ele com certeza entenderia.

- SE EU PUDESSE, SUMIRIA COM VOCÊ NESSE MOMENTO! – Sua voz era como um rugido na noite escura, assustando os animais, ganhando respeito de seus companheiros e acalentando meu coração, por mais estranho que isso parecesse. – Mas a lei me obriga a leva-la viva para julgamento perante os Príncipes.

Senti que poderia me partir em mil pedacinhos se alguém tocasse em mim. É claro que ele não poderia me salvar, nem mesmo com um ato de misericórdia para sua velha amiga. Despedaçada pelo sentimento que é estar só, mesmo vivendo entre centenas de pessoas, dei um passo para trás, em direção a cachoeira. O barulho da água era afiado, cortando o vento e gelando o ambiente. Mais um passo. E depois outro.

Seu olhar encontrou o meu, já sabendo o que estava prestes a acontecer, mas nada fez além de arfar e piscar seus grandes cílios para mim. A dor da perda era grande, mas algo pior aconteceria se voltássemos juntos. Quando a cavalaria finalmente percebeu o que eu estava prestes a fazer, se aproximaram prontos para interceptar mas o capitão apenas ergueu a mão fazendo com que todos parassem ao seu comando.

- Deixem que tente. Ela não tem essa coragem.

Mas eu tinha. E ele sabia disso.

Suspirei profundamente mais uma vez, colocando meus pés descalços dentro do rio, mais próxima da beira. Como seria a sensação de voar em queda livre...? Lancei um último olhar afetuoso ao homem que um dia me prometeu os céus, que correspondia meu olhar com dor, implorando meu perdão por não poder me salvar. Um leve tremor atravessou meu corpo e eu saltei. Senti a força me puxar para baixo enquanto água gelada respingava pelo meu rosto e o céu noturno se abria acima de mim. Meus olhos marejados se fecharam e a escuridão me dominou.

Assim como o silêncio.

*

Acordei sobressaltada da cama. Estava suada e ofegante, os cabelos grudavam em meu rosto e eu mal conseguia assimilar onde estava.

Minha irmã passava a mão pelas minhas costas tentando me acalmar.

- Shh... está tudo bem, foi só um pesadelo. – Ela me deitava novamente, ajustando os cobertores. – Volte a dormir, você está segura.

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