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“Ela passou do meu lado. Estava andando com, provavelmente, seu irmão mais velho, a julgar pelo zelo disfarçado com o qual ele olhava para ela. Mas, apesar do zelo, havia muitas diferenças entre os dois, começando pela idade: ela por volta de seis, e ele quinze ou dezesseis. Entretanto, enquanto ele andava com os ombros caídos, a coluna encurvada, olhar macilento, ela estava fazendo o mesmo com uma postura invejável. As pernas estavam levando o corpo com a maior determinação que já vi em uma única pessoa, seus olhos estavam atentos e erguidos e seu semblante otimista. Ela sabia onde estava indo, e queria ir aonde estava indo. Enquanto sua postura dizia que aquele seria um ótimo dia para ela, a dele se perguntava por que, diabos, tinha que levantar tão cedo para levar a irmã até a aula de balé. Ela estava impecável, em seu collant branco e seu vestidinho azul-céu, além dos cabelos firmemente presos em um coque, enquanto ele tinha a aparência descuidada, de quem só levantou da cama e escovou os dentes para sair.

            “Invejei aquela criança. Acredito que, nem em toda a minha vida, não tenha conseguido reunir tanta determinação quanto ela. A julgar pela sua postura decidida diria que daqui a alguns anos ouvirei falar dela, fazendo carreira em companhias de dança famosas do Brasil, e quem sabe do mundo. Mas sei que, no fundo, isso não é verdade. Assim que chegar a idade de seu irmão, ou talvez antes, ela irá cansar de acordar todas as manhãs cedo, atravessar a cidade, enfrentar um trânsito louco, para assistir a duas horas de aula de dança. E ganhará seu olhar sem brilho. Os sonhos, quase sempre, morrem diante de tolas dificuldades.

            “Mas eu já fui um dia como ela. E lutei muito, muito mesmo. E, assim como provavelmente acontecerá com ela, eu esfriei, perdi a excitação pela vida, pela luta. É certo que hoje em dia tenho um bom dinheiro no caixa, um emprego estável, e relativamente bom, sobre o qual tenho pleno domínio, sou respeitado e reconhecido, e uma mulher linda e ainda sensual, e que ainda mantém o fogo na cama e me satisfaz, além dos filhos que ainda não me dão trabalho. Quando a garota começar a namorar e o menino a se drogar, aí, sim, terei do que reclamar, mas até agora, nada disso. Mas creio que falte alguma coisa, por que nada disso me enche os olhos, e não preenche meu espírito.

            “Estou deprimido justamente porque tenho de tudo. Amor, família, dinheiro, carreira. Só não tenho mais a vontade de lutar por mais coisas, já que de nada mais preciso, me falta ambição, me falta sentir falta das coisas, de ter necessidades e vontades novas. E foi isso por isso que vim até você. O que você pode fazer por mim?”.

            Ele me invocou, me tirou da confortável poltrona na qual estava sentado, para me falar essas palavras. Normalmente, venho já sabendo, inclusive, o que me será pedido. Mas no caso dele não senti nada, nenhum sinal de que teria algum servicinho por aqui, nem mesmo senti ser invocado. Quando vi já estava aqui. E o pior era que nem mesmo ele sabia o que queria. E me perguntou o que eu poderia fazer por ele, me pedindo uma sugestão. Nunca tinha enfrentado uma situação assim; quando o indivíduo me chama, venho, ouço sua proposta, lhe dou a contrapartida e, se ele aceitar, fechamos o negócio e, no máximo, em vinte e quatro horas, o seu desejo é atendido. Mas nesse caso, teria que pensar primeiro: “O que posso fazer por esse camarada? Deixe-me ver...”. Agora, além de lhe ceder um favor, eu teria que pensar na melhor maneira de fazer isso? Olhei nos olhos de minha alma prometida e perguntei:

            — Você está de brincadeira comigo? Como assim você me chama e nem mesmo sabe o que quer? Além de fazer o trabalho sujo agora terei que ser seu conselheiro? – Estava bufando. Mas ele nem mesmo deu algum passo para trás. Ficou imóvel. Provavelmente assustado com minha aparência.

            — Desculpe. Mas é que estou muito perdido, de verdade – disse, retomando o fôlego, depois de se acostumar com o cheiro de enxofre – Minha mulher não sabe mais o que fazer para me deixar feliz, e até ela está definhando. Não quero vê-la triste. Por favor, me ajude a encontrar uma saída e chegar até ela. – Falou ele, nitidamente desesperado, mas sem perder a compostura. Gosto de gente assim.

            Vi que valia a pena ajuda-lo a pensar em algo, afinal, ele parecia decidido em fechar contrato, e uns minutinhos a mais na negociação não me fariam diferença. E, além disso, eu ainda poderia me divertir um pouco.

            — Tudo bem, tudo bem. Explique-me exatamente o que você quer, e eu penso em alguma coisa. Mas com um trato: eu não vou lhe dizer o que vou fazer. Tudo será uma surpresa. Você me explica exatamente o que quer e eu lhe darei. Mas não saberá de absolutamente nada do que farei para que você consiga o que quer. Ah, e claro, venho cobrar o que quero daqui a dez anos, nenhum dia a mais ou a menos. De acordo?

            Ele titubeou por alguns instantes, provavelmente pensando no que poderia vir de mim, mas logo seu olhar ficou decidido e ele pareceu concordar com os riscos que isso poderia causar a ele e sua família.

            — Tudo bem. De acordo. – disse, ainda inseguro. – Até a Deus pedi o que estou a ponto de lhe pedir e nenhum sinal recebi. Imaginei que fosse loucura de minha parte querer mais do que tenho hoje.

            — É, Ele nunca dá conta do serviço todo. Nem sempre é a solução para tudo, embora as pessoas ainda se iludam. E vou lhe contar um segredo, mas não espalhe: de vez em quando – sussurrei, para dar um ar de mistério; os homens adoram um drama – ele me pede para fazer alguns de seus serviços, para poder respirar um pouco mais aliviado – E pisquei, maroto, em troca de um sorriso de soslaio. Ele estava se soltando – Mas me diga logo, homem, o que você quer, para que eu comece a pensar de uma vez no que fazer. Odeio trabalho acumulado.

            — Ah, tudo bem. Lá vai: eu quero ter pelo que lutar. Sim, sim, eu sei – disse, quando eu virei os olhos e levantei a sobrancelha em reprovação – que é um pedido muito vago. Mas realmente não sei lhe dizer o que você pode fazer por mim. É o máximo onde consigo chegar, a partir daí é com você.

            Fiquei imaginando o que poderia fazer e o que poderia causar com aquilo. As pessoas, normalmente, fogem à luta, não em direção a ela. O que fazer com um homem que já lutou tanto – está bem, pode até ser que nem tanto assim, mas o suficiente para chegar onde está – chegou onde queria e agora quer mais luta? Pensei que as pessoas sossegassem quando não viam mais sentido na vida. E esse quer mais obstáculos, desafios. Ele, porém, esqueceu-se de uma coisa: já é velho, será que tem fôlego para mais desafios? As pessoas ficam velhas e perdem a vitalidade, a força, a coragem, e o mais importante, o otimismo; a ideia de que ainda se pode fazer mais uma tentativa, justamente porque ainda se tem tempo, se vai. Mas e alguém aos 40 anos, cansado, que já não tem tanto brilho nos olhos quanto um de 20? As pessoas, em seu mais profundo otimismo e ingenuidade, fazem promessas de chegarem à determinada idade com o fôlego e determinação intactos, mas se iludem apenas; não sabem, ou não querem saber, que a vida lhes tira muito mais do que alguns tufos de cabelo. Esse homem tinha chegado a esse ponto, de cansaço, e ainda não tinha notado e ao invés disso pedia por mais. Porque não se aquieta? Medo, talvez. Medo de talvez acabar sem objetivo nenhum na vida.

Mas como eu não sou uma criatura que se importa demais com as pessoas, e prefere os negócios, voltei meu pensamento para o homem negro, careca e alto, com a pele lustrosa, e olhos pretos e cintilantes, por causa das velas, que me pedia para resolver seu problema. Me passou apenas uma alternativa para resolver o problema daquele homem, mas ele iria, infelizmente, para ele, se arrepender de ter me convocado. Mas não sou homem de me apiedar dos outros.

— Ok, ok. Vamos aos trabalhos!

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⏰ Última atualização: Feb 28, 2015 ⏰

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