Hora de tiros

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Ele sangrava feito um porco. Eu acho. É uma expressão que a maioria das pessoas usa no cotidiano. Havia uma poça gigantesca do seu próprio sangue no chão. Não me atentei ao cheiro da pólvora, ou ao cheiro macabro que o sangue tem. Apenas ao líquido vermelho que manchava o chão do pequeno mercado na beira da estrada oeste, aquela que saia da cidade e seguia em frente para Deus sabe onde. Tive a certeza absoluta de que nem com quinhentos anos de limpeza profunda e deterioração do tempo o sangue não sairia. Estaria sempre ali, por mais que não pudesse ser visto a olho nu. Quando se passassem vinte anos, se o bar continuasse aberto, talvez agora pertencente a um dos filhos de Tobias, ou um dono totalmente diferente, crianças correriam por aquele corredor, brincando e implorando pacotes caros de biscoitos, ou marcas caras e importadas de outra porcaria qualquer. Bem por cima de onde esteve o corpo imóvel de Tobias.

A morte é esquisita. Sempre me assombrou quando era criança. Em algumas noites essa perspectiva me apavorava tanto, que acordava minha mãe e implorava para que ela respirasse mais alto, apenas para ter a certeza de que seu coração não havia parado enquanto ela dormia. Na maioria das vezes, ela apenas ria e me mandava ficar quietinha. Nas outras, ela se irritava e apenas dizia algo parecido com "todos vamos morrer um dia, quer você queira ou não". É o que me apavorava naqueles anos. Um dia, de uma hora para outra, tudo acabaria. E então viria alguma coisa depois? Havia um paraíso ou um antro de pecados e judiações para mim? Ou havia apenas o vazio? E se a resposta fosse o vazio, eu o sentiria? Não em minha carne ou ossos ou sangue. Afinal eu não existiria. Não sei explicar. Mas o fim sempre tinha sido o meu bicho papão. Olhando para Tobias, para seus olhos desfocados, vidrados em lugar nenhum, tive a certeza de que não havia nenhum paraíso. É impossível existir alguma coisa bela que compensasse pelo menos metade da ruindade humana.

Sua mão estava meio manchada com o seu sangue, mas não completamente, afinal ele segurava o celular quando caiu no chão. O aparelho eletrônico é quem levou a pior, na minha humilde opinião. Sua camisa xadrez agora estava furada com a bala que atravessou em cheio seu peito esquerdo. Seu coração. Ele tinha se partido em milhares de pedaços, não metaforicamente falando. Essa era uma certeza absoluta que me consumiu por meio segundo. Havia tantas coisas mais para se memorizar do que estava bem ali, diante dos meus olhos, mesmo que meu inconsciente implorasse de joelhos que eu me virasse e contasse até dois mil. Talvez, depois de dois mil segundos, tudo o que tinha acabado de acontecer simplesmente iria retroceder ao que era antes.

Sua camisa xadrez não estava amarrotada em nenhum de seus cantos. Nem sua calça amarronzada meio surrada pelo tempo, mas ainda assim apresentável. Seus sapatos pretos não pareciam ser caros. Deveriam ter sido comprados em alguma liquidação, ou então poderia ainda ser um presente de natal, de um de seus filhos. De qualquer forma, o sapato não estava sujo, exceto pelo que eu bem sei. Ele não parecia ser o tipo de pessoa que sabia bem lavar um prato sozinho. Provavelmente sua esposa é que tinha preparado sua roupa para o trabalho. Acredito ainda, que os dois tenham se dado um selinho rápido antes que ele entrasse em seu carrinho popular e dirigisse até o fim de mundo que é onde fica a sua lojinha, agora condenada para sempre.

Não sabia bem o que ainda estava fazendo parada ali, olhando para aquela cena pavorosa, pensando na vida pessoal de Tobias. Mas não conseguia me mexer. E quando pensei em fazê-lo, meu peito se apertou e senti um frio horrível na barriga. O idoso caído tinha netos, haviam algumas fotos deles bem atrás do balcão. Mas ele tinha algum gato? O bichano nunca entenderia que seu dono não voltaria para casa. Não entenderia bem como isso funciona. Ele nunca acreditaria caso alguém o dissesse que o grisalho nunca mais passaria pelo batente e o afagaria nas tardes chuvosas de dezembro. O aperto no peito que eu sentia naquele instante, tinha pelo menos dois por cento da dor que ele havia sentido no seu?

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