Capítulo 1

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Respirei fundo apertando as unhas nas palmas das minhas mãos, enquanto sentia as rodas do avião baterem com impacto na pista de pouso. Além do medo de voar, o frio na barriga e o pavor de pensar no que viveria dali para frente.

Eu adorava novidades. Pintar o cabelo, comer em um restaurante que tinha acabado de abrir só para experimentar um novo tempero, aprender um idioma novo porque alguém me disse que não conseguiria, mas uma mudança como aquela... Realmente, nunca tinha imaginado.

Eu amava o Nordeste, região de onde eu vinha. Nunca imaginei que, um dia, faria as malas e iria embora por livre e espontânea vontade. Mas eu precisava ir. Tinha que dar esse passo e deixar tudo para trás, mesmo que as coisas boas tivessem que permanecer junto com as que me magoaram.

Depois de tudo que aconteceu eu não podia mais continuar na mesma cidade, recebendo olhares de pena, respondendo que estava bem o tempo inteiro, mesmo quanto não estava. Precisava de novos ares, novos desafios. E era em busca disso que eu estava indo. De uma nova vida.

Eu sabia que podia dar errado, mas tinha fé de que as coisas aconteceriam como tinham que ser.

O avião estava cheio, e assim que as portas foram abertas as pessoas amontoaram-se, apressadas, tentando ir embora. Apenas quando a maior parte dos passageiros tinha desembarcado, levantei-me. Segui o fluxo de pessoas, sentindo-me ainda mais nervosa, enquanto aguardava minhas malas que, com a minha sorte, foram as últimas a chegar.

Marcone, meu irmão e melhor amigo, me esperava no desembarque. Abriu os braços assim que nossos olhares se encontraram, o que fez com que sentisse como a criança que ele sempre defendeu de tudo e todos. Corri em sua direção, deixando que minhas malas caíssem desajeitadas em algum lugar próximo a nós.

— Ei, anã — o sorriso em sua voz era evidente, mesmo com o rosto afundado em meu pescoço durante o abraço.

— Ei, grandão — retruquei da mesma forma que nos tratávamos desde sempre. — Estava com tanta saudade — o apertei com mais força contra meu corpo, sentindo o calor familiar que emanava.

— Eu também — afastou-se um pouco para encarar meus olhos — Sabe, você está ainda mais bonita pessoalmente. Nem parece aquela menina desengonçada de cinco anos atrás.

— Bonita eu sempre fui, meu filho. Desengonçada, nunca deixarei de ser, para o desespero de todos ao meu redor.

Meu irmão riu, beijando minha cabeça.

— Acho que nosso apartamento vai sofrer então — deu uma cotovelada de leve em minha costela antes de se afastar para buscar minhas malas.

Ouvir aquelas duas palavras, nosso apartamento, fez toda a diferença para mim. Um dos meus grandes receios com a mudança era ser um peso na vida do meu irmão que batalhou tanto para conquistar a independência que tinha hoje.

Marcone e eu nos falávamos todos os dias desde que, cinco anos atrás, conseguiu uma chance de estudo em um bom curso de cabelereiro no Rio de Janeiro. Foi quando ele também se assumiu como gay para a nossa família. Eu já sabia, claro. Nós não tínhamos segredos um com o outro. Marcone me falou sobre seu desejo de beijar garotos antes mesmo de conseguir entender o motivo. Contou-me quando aconteceu seu primeiro beijo em um homem em uma festa no São João na nossa cidade. Em contrapartida, foi o primeiro com quem quis dividir o momento quando perdi minha virgindade. Eu o amava, e como diria Meredit Gray, ele era a minha pessoa.

Depois de se assumir, meu pai disse que não queria que ele voltasse para nossa casa nunca mais. Segundo ele, meu irmão era a vergonha de nossa família. Não para mim. Marcone era meu orgulho. Sabia o que queria e corria atrás dos seus sonhos. Ele me inspirava. Sempre me inspirou. Pouco importava se ele amava homens ou mulheres. Amor era amor, e meu irmão era uma das pessoas com a maior capacidade de amar verdadeiramente que eu conhecia na vida. E, talvez fosse esse um dos motivos pelos quais era exatamente aqui que eu precisava ficar.

Aquele Maldito SorrisoOnde histórias criam vida. Descubra agora